ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

18.8.08

VILA ISABEL



Texto de Aldir Blanc extraído do livro Vila Isabel: Inventário da infância, da coleção Cantos do Rio, editado pela Relume Dumará. Fotos do editor do blog.


Vila Isabel será eternamente a inocência, uni-du-ni-tê, bente-que-bente-o-frade, trinta-e-um-de-janeiro-lá-vou-eu, firidô-sô-rei, palavras entrelaçadas à palavra BUCETA, escrita a lápis na parede suja do banheiro da escola 2-8 Barão Homem de Mello. Por mais que apagassem, a palavra ressurgia sempre, metáfora e advertência do que o desejo geraria no bojo do tempo, o tempo, esse balão que não pára de pegar fogo.


As manhãs compensavam tudo. Chegavam cheias de pássaros, sol, azul, verde, e uma procissão de penicos cheios pra descarregar. Talvez daí venha minha natureza “escatológica”: aprendi cedo que sol e mijo são inseparáveis, verter, jorrar, enquanto as noites, sempre assustadoras, nos enclausuram, obrigam a gente a reter, sob pena de atravessar a sala escura e ir espiar, pelo vão da porta da cozinha, o quintal amigo transformado no Continente Negro, onde quase se ouvia o rugido dos grandes carnívoros, o sibilar de ameaças veladas.


Eu não peguei a Vila Isabel das serestas, das batalhas de confete na rua Dona Zulmira, nem sei se o apito que eu ouvia era o da fábrica de tecidos do samba.


Como era Vila Isabel? Talvez mostrando as pessoas eu possa ser mais fiel ao lugar e à época. Vila Isabel, com seu nome de princesa, era capaz de assistir, inabalável, a situações assim: cedinho, minha avó Noêmia abria as janelas que davam para a rua. Era um ritual: arejar a sala da frente. Já encontrava dona Otylia em seu posto, ou melhor, na janela verde em frente.
— Dia, dona Noêmia.
— Dia, dona Otylia. Como tem passado?
— Os rins, um pobrema, sempre me apoquentando... não me deixam dormir.
— Toma um chazinho de quebra-pedra. Mas não esquece de lavar bem pra sair a terra. [...]


Vila Isabel é a febre, a rua cheia durante os torós de verão, barquinhos de jornal atirados da janela [...] feijoadas com a mesa grande armada no quintal [...] a casa do Benedito Lacerda com o jardim coberto de folhas amarelas o ano inteiro, como se em casa de flautista fosse sempre outono, festas de São João, anarriê, balancê com o par vis-à-vis [...] a grande frase do filósofo Von. S. Rossaren: “Asftas arden und aspregas döen” [...] voltar ao quintal pra brincar de O Anjo e de Metralha, de Gerônimo, o Herói do Sertão e de Moleque Saci, almanaques do Globo Infantil, Bolão e Azeitona, o Tico-Tico [...] sopa de entulho, caldo verde, doce de abóbora com coco, compota de jabuticaba, rocambole recheado de goiabada derretida [...] pelada com bola de meia, risco de giz e casca de banana pra pular amarelinha, não matar lagartixa, que é bicho de Nossa Senhora, sanduíche de queijo derretido com lingüiça, ou bola ou búlica, espingarda de rolha, revólver de espoleta, pistola d'água, bomba de Flit [...].


[...] canelas esfoladas, apanhar sereno, ficar gripado e mais febre, a morte rondando durante a coqueluche que se agravou, mas eu não tinha medo porque a vó Noêmia era a própria encarnação de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. [...] Quando ela já estava bem velhinha, tomei um porre e cantei uma valsa de minha autoria, música e letra, me desacompanhando ao violão, num dos últimos aniversários dela. Era assim:

Qual o outro nome da Lua?
Noêmia,
pois me acompanha de noite
na noite boêmia.
É como as fadas dos livros
que eu li no passado
pois quando menos se espera
aparece ao meu lado.
Dizem que em noites azuis
Noêmia
veste asas brancas de anjo
e pede, discreta,
que a Virgem Santa projeta
a ilusão de um poeta
que ainda pensa que o céu
fica em Vila Isabel.

Assim como, por abrir a camisa, não se vê o interior do meu peito, também não se verá lá dentro, nem na autópsia, como a tatuagem de um marinheiro de primeira viagem, meu coração pulsando e repetindo, apesar da flecha que o atravessa, as palavras em sangue: Vila Isabel.


Vila Isabel é a febre de viver, que não passará enquanto eu respirar. Vila Isabel é a febre que só vai abrandar (será?) com a minha morte. Vai, Aldir, ser Blanc na vida, em nome da Vila.

2 comentários:

Anônimo disse...

maravilhoso

Anônimo disse...

Eu gosto tanto do Aldir Blanc, pena que ele é da esquerda festiva e eleitor do,PT. Nem tudo na vida pode ser perfeito.
Fernando José - SP