Meus passeios a pé pelo bairro seguem sempre os mesmos itinerários. Saio do meu 190 para a direita, transponho fachadas de arranha-céus. Na esquina, onde havia aquele café das madrugadas, existe hoje uma lanchonete. Virando à direita, começo a subir Cândido Mendes que gosto de chamar de D. Luísa. Essa dona que deu seu nome era a mulher de Joaquim Clemente da Silva Couto, nos terrenos de cuja chácara abriu-se o logradouro, em 1845. Meu tio Antônio Salles aí morou, no princípio do século, mais ou menos à altura dessa Casa da Suíça — onde residiram Rachel e Oyama. Assim, subindo, cada vez que troco os pés na marcha, sei que estou pisando lugares palmilhados pelos amigos, por meus tios Salles e Alice, por meu Pai quando vinha visitá-los. Galgo esse primeiro trecho fazendo essa reprodução do caminhado dos meus e vou calcando solos do ministro Hermenegildo de Barros, da prima Maricas do Juca Horta e suas filhas que moraram por aqui. Os passos de minha mãe também conheceram essas calçadas quando ela vinha ver a parenta. Povoando a rua de fantasmas, continuo minha ascensão. Nenhuma casa antiga, no princípio. Só os altos prédios, cujos térreos são ocupados pela alegria comercial de açougues, casas de ferragens, mais lanchonetes, barbearias, cabeleireiros femininos, drogarias, mercearias, farmácias. Entre elas, casa fechada, cada janela uma aparelhagem de ar-refrigerado, porta discreta e desde pela manhã o entra e sai de pares. Alta rotatividade. Estaco sempre a contemplar as fachadas dos belos sobradões de números 118 e 117. O último traz data na platibanda: 1882.
Outra parada obrigatória é a esquina de D. Luísa com Hermenegildo de Barros que seguindo meu saudosismo gosto também de chamar rua do Chefe de Divisão Salgado. Numa das esquinas desse encontro e em terrenos ao lado, a demolição de duas antigas casas. Pela metragem quadrada dos lotes desnudados tem-se ideia do monstro que vai levantar-se no local.
Consola a visão dos 17 e 19, casas datadas de 1896, dominando pela sua autenticidade. São de platibanda, dois andares e térreo habitável. A porta que sai do rés da rua tem a altura do térreo até a linha superior das janelas. Lembram certos sobradões da Bahia.
O
35 já é outro arranha-céu. Em frente, sem placa de numeração (mas entre o 32 e
36) ressalta um dos mais lindos chalés do bairro. As duas águas são alegradas
na frente pelo rendado leve dos lambrequins e, na parte mais alta da fachada,
duas janelinhas para arejamento do forro, conjugadas e protegidas por grade de
serralheria tão cheia de curvas, alças, protuberâncias, bossas que nos seus
restos de prateado o ferro se liquefaz e fica parecendo quebrado de espuma da
crista de onda que fosse imobilizado na graça de sua posição — como em chapa de
fotografia instantânea.
O 59 dir-se-ia que
é sonoro como as clochetes da elevação, na missa. Esse zirzumbir prateado vibra
retine nas serralherias das sacadas e do portão. Minha alma se entristece com a
reforma aviltante por que passou o velho 67… Assim vou visitando meus amigos
dessa subida.
Paro diante dos gêmeos que viraram suas fachadas para a travessa
Cassiano e de que um tem porta lateral para Hermenegildo, com o número 73.
Parecem com nosso 106 de Aristides Lobo e pela travessa, acima, começa Ouro
Preto. Longa extensão de construções reformadas, de paredões e baldios servindo
para despejo de lixo — colchões, velhas poltronas eventradas, baldes furados,
penicos descascados, bacias sem fundo, entulho despejo da vizinhança. Um pouco
antes do 111, belo muralhão com escadas de pedra, conduzindo a terreno que
derrama sua vegetação como gigantesco pote de avencas. Os degraus devem ter
sido o acesso para casa ruída ou derrubada.
O dito 111 é um casarão
modernizado. Está pintado dum verde estridente, com tinta plástica. Essas
tintas dão colorido novo que acentua e aumenta os vermelhos, os amarelos, os
azuis, os róseos, todas as cores que eram usadas na pintura dos prédios
coloniais e imperiais. Sua aplicação, longe de desvirtuar, como que revela e
salienta os caracteres das nossas velhas edificações. Mais lances de paredões
de pedra que o tempo foi desconjuntando e entre cujas frestas irrompem árvores
que sobem renteando o muro sobre o qual espalham digitações de raízes que são
como mãos magras mas potentes a segurar os punhados de monolitos que sem sua
força ruiriam. Voltando ao que mencionei antes, vale dizer alguma coisa sobre a
maneira como são tratadas nossas construções pelos que as reformam. Uns querem
modernizá-las e suprimem toda a fantasia, enfeite belle-époque que
salientava-se nas fachadas e florescia em torno às janelas e portas. As cores
álacres da pintura são substituídas por um cinzento de cimento cheio de
faiscações duras de mica. Mais valia derrubar a residência antiga que
desfigurá-la desse jeito. Outros pensam que respeitam o tradicional querendo
melhorá-lo e acrescentando à simplicidade primitiva das casas desornadas o
excesso que lhes parece mais requintado. Exageram nos painéis de azulejo, nos
jarrões de louça sobre os muros, nas pinhas em cima dos parapeitos, nas
estátuas vidradas dos beirais. Os dois exemplos abundam nessa subida de
Hermenegildo e depois, em toda Santa Teresa.
É justamente assim que acaba esse
lance de via pública em cujo ângulo fronteiro fica a moradia que parece
abandonada, onde viveu o ministro cujo nome passou à rua. É uma construção
arnuvô [art nouveau] cheia de vidros coloridos fazendo coberturas apoiadas em estruturas de
ferro. Num canto, essas vidraças de cima a baixo parecem cobrir elevador ou
escada de caracol. Tem o número 158, dois andares na frente e três no lado que
fica em Visconde de Paranaguá.
Próximo existe pequeno belvedere dando sobre
níveis inferiores e abrindo vista fantástica sobre a baía. Tem bancos de pedra
para os namorados e os desocupados. Geralmente ninguém no lugar ermo e propício
aos ladrões. Dele vê-se o mar, a ponta dos aterros onde está o Aeroporto Santos
Dumont e, mais próxima, a do que vem do Flamengo e onde começaram,
recentemente, grande construção de cimento armado destinada, dizem, a
restaurante. Ninguém. Nenhum veículo. Só passa o vento que vai para o largo ou
dele vem mais fresco sobre a testa e o corpo molhado do suor da ladeira
vingada.
Depois da parada nestes altos visão ouro e azul, começa-se a descida.
Duas opções. Taylor ou Visconde de Paranaguá. Ambas profundamente Rio velho e
tão bairro da Glória que sempre hesito. Taylor principia numa ladeira curta e
mais escabrosa que a do resto da rua. Do lado direito, grandes barrancos e em
frente, o 159, bela e pequena casa do início do século [hoje desaparecida]. Logo em seguida,
ribanceiras, do mesmo lado, que servem para despejo de lixo. Toda a encosta da
montanha está coberta de utensílios imprestáveis e policrômicos, de restos de
papel, de comida, de roupas que repugnam e revoltam a quem olha de perto aquela
imundice acumulada pela negligência, descaso e incapacidade de nossa limpeza
urbana.
A rua Taylor tem esse nome por ter sido aberta nos terrenos da chácara do Chefe
de Divisão João Taylor. Certo em parte alta dessa propriedade — o que
determinou a forma de crossa do logradouro. Seus números de 139 a 135 oferecem,
a quem vai descendo, primeiro a vista de casinhas típicas do princípio dos 1900
e depois ruínas de muro com sobras de gradil e portão. A paisagem do resto da
rua até sua chegada à esquina de Lapa é cheia de velhas casas cada qual
oferecendo detalhes arquitetônicos casuais ou intencionais.
No 120-A, por
exemplo, uma escadaria barranco acima teria sido solução para resolver a subida
mas o ziguezague dos lances de degraus de ferro se acumulando e empilhando
acaba desenhando uma geometria esticada que parece sanfona puxada de cima,
enquanto os corrimãos de metal, polidos pelo uso e cintilando ao sol, ficam
como raios que se baralhassem simetricamente. O 120, desvirtuado por
aperfeiçoamento, deixa de ser convincente apesar de ter ficado bonito e alegre:
azul e branco, pinhas e estátua de louça. A varanda canta em cima, atulhada de
gaiolas de pássaros. Logo sobrados geminados da maior dignidade — o 114 tendo
na platibanda a data 1894. Mas a mais curiosa e interessante edificação da rua
é o 110 de que a graça reside na varanda cujas janelas são encimadas e têm por
baixo painéis de madeira trabalhada a serra tico-tico, ostentando vazios
favoráveis à ventilação. Fazem renda de Veneza. Do outro lado escarpas do
morro. Às vezes as modificações introduzidas num prédio pela sua quantidade e
variedade são como improvisos musicais na sua surpresa e fantasia. Os sobrados
no alto de vasta amurada de arrimo de números 100 e 96 oferecem essa sugestão.
Depois de atravessar Conde de Lages, Taylor mostra à frente um belo
trecho da rua da Lapa, mas antes de nela entrar, apresenta ainda três
edificações dignas de atenção. A fachada lateral de casa avarandada numerada
como 11 de Conde de Lages que é o Hotel Canarinho, com quartos para rapazes; um
chalé de três janelas datado de 1886, beirais rendados de lambrequins,
bandeirolas de vidro central que se ilumina ao dia como safira e um óculo de
ventilação do forro, tão tecido e trabalhado que parece uma aplicação redonda;
finalmente os lados de outro chalé, um dos mais lindos do bairro e numerado por
Lapa 230.
Virando à direita, um pequeno trecho desta rua que pelo aspecto e caráter já é a da Glória. Piso com atenção a buraqueira. Dupla atenção: primeira por saber que palmilho o velho caminho da Lapa do Desterro, aberto na colônia pelo governador Vasqueanes; segunda atenção, para não quebrar os ossos no logradouro que duvido tenha símile — pelo desmazelo dos responsáveis por seu calçamento e limpeza. É como Sapucaia que tivesse passado por terremoto ou bombardeio. Entra-se. Vê-se janela onde, como aparição de outras eras, como uma espécie de celacanto, há uma velha rebocada que chama pela fresta das portadas postas de meia jota. Dizem que essa relíquia de uma prostituição superada faz a vida ali há mais de quarenta anos, que é de tudo e pelo jeito ainda tem freguesia. Conheço-a de vista de meus passeios a pé e quando ela da janela me rejuvenesce com seu discreto sinal de cabeça (entra, simpático) — nunca deixo de cumprimentá-la grave e profundamente como a uma grande dama. Depois desta, outras instituições: Hotel Cid, Empire Hotel, Escola Deodoro com sua fachada imunda, os portões enferrujando e breve deixando cair no chão as duas belas moldagens metálicas das armas do antigo Distrito Federal; o arranha-céu no 122 onde mora o nosso José Olympio e chegamos ao chafariz mandado erigir em 1772 pelo vice-rei e capitão-general-de-mar-e-terra d. Luís de Almeida Soares Portugal Alarcão Eça Melo Silva e Mascarenhas, conde de Avintes e marquês do Lavradio.
Das alturas que
descrevemos e onde fica a casa que pertenceu ao ministro Hermenegildo de Barros
pode-se baixar não só por Taylor (assim acabamos de fazer) como por Visconde de
Paranaguá. Essa via pública começa naquela e é primeiro uma reta que parece ter
procurado a rua da Glória mas que recuou diante das escarpas do morro onde
deixou o fundo de saco dum impasse. Descendo pelo outro lado, inflete-se em
ângulo reto de modo que sua segunda parte está para a primeira como a haste de
um T maiúsculo. Seu início faz-se por cerca duns cento e cinquenta degraus
separados de dez em dez por patamares em cujo centro está plantada uma árvore.
Aos lados dessa descida, sobrados e casas do início do século, restos de muros
ruindo, casarões se desmantelando, baldios cheios de lixaria e a alegria das
crianças naqueles batentes onde elas levantam suas fantasias e rolam suas
aventuras. Há uma ruína no lado ímpar, mostrando fundos para a ladeira e tendo
frente provável em Conde de Lages, que desafia a gravura — tanta a poesia que
foi dada aos paredões se desarmando pela erva fina dumas folhinhas da forma de
salsa miúda toda cerrada e fechada como se fosse reunião de avencas postas em
gramado na beira das platibandas, molduras e beirais. Visconde de Paranaguá
termina em Taylor por arrimos de pedra, muros do lado par e pelo inevitável
arranha-céu no lado ímpar. Vira-se naquela, segue-se pequeno trecho e já damos
em Conde de Lages.
Aqui outrora retumbaram hinos. Quando havia prostituição ostensiva no Rio, o trecho da zona que vinha da parte sul — transversais do Catete, Russel — comunicava-se com o da parte que ia para o norte pelos braços abertos das ruas da Glória e Conde de Lages que desaguavam nas calçadas felizes de Lapa, Joaquim Silva, Morais e Vale, do glorioso beco dos Carmelitas. Essa zona alegre continuava um tanto diluída, por Mem de Sá e Riachuelo, escondia-se um pouco e reaparecia apoteótica nos quarteirões prodigiosos do Mangue — que puseram Blaise Cendrars bestificado e dizendo que não vira ainda nada igual nos bairros prostibulares das partes do mundo que conhecera. Eu e os meus colegas da Assistência Pública, veteranos do seu Serviço Externo, somos, com as donas de bordel, os souteneurs, os cafetões, os malandros, os gigis, os carachués [=rufiões] e as próprias putas, os grandes conhecedores desse ambiente. Lavagens de estômago de envenenadas com fenol, permanganato, oxicianureto, sublimado, creolina — praticamo-las nos randevus de luxo e valhacoutos mais canalhas; caras trabalhadas à navalha, lombadas abertas em belas incisões esguichando sangue, contusões de porrete, ferimentos penetrantes, tripas ao léu, comas alcoólicos, êxtases de éter sulfúrico, estupores de cocaína — transportamos às centenas para entregar ao Serviço Interno do nosso antigo e desaparecido H.P.S. E éramos bem tratados, respeitados, em ambientes que nunca teríamos a ousadia de entrar sem as imunidades do avental branco e da malinha de madeira do socorro-urgente. Sempre penso nesse mundo iluminado, poético, trágico, sinistro e orgástico quando nos meus passeios pela Glória entro — como íamos começando a fazer antes dessa digressão — quando entro, dizia, numa rua Conde de Lages despida das galas de seus antigos festivais e vazia de suas multidões de machos em cio. [...] O quarteirão que se percorre por Conde de Lages e sua angulação até a Glória modificaram-se completamente. A população é de pessoal do comércio, famílias modestas, estudantes, gente simples. As aves de arribação procuraram outros pousos. [...] As velhas casas impluíram por si ou foram demolidas. Sobraram sobrados e térreos do princípio deste século — inconfundíveis pelas fachadas arnuvô e a rua segue quieta e apaziguadora até as paredes laterais da Escola Deodoro e do arranha-céu em frente — batentes abertos sobre o antigo Boqueirão, o Caminho da Olaria — hoje nossa rua da Glória — velha de duzentos para trezentos anos.
9 comentários:
mUITO, MUITO BOM.
tENHO QUE IR FAZER ESSE PERCURSO. pRECISO DE CICERONE!
uM ABRAÇO
fRANCISCO
BRAVO, IVO, VOCÊ NOS CONCEDEU UM PASSEIO SOBRE O PASSADO....
Parabéns, Ivo. Excelente a sua ideia e também a realização.
Abraço,
Rogério Marques
Parabéns Ivo, pelo belo trabalho realizado, que proporciona Ao mesmo tempo conhecer Pedro Nava na sua realidade cotidiana e também as históricas ruas do Rio antigo.
As descrições do mesmo em relação aos antigos locais de prostituição e suas misérias e tragédias reabrem uma janela no tempo e fazem pensar na situação atual do Rio de Janeiro, onde uma espécie de “prostituição “ penetrou até nos mais elevados rincões do poder político.
Onde será que suas pesquisas nos levarão no próximo trabalho?
Desde o seu vídeo do passeio pelo Morro da Conceição já fico aguardando o próximo, certamente como a maioria que acompanha suas publicações.
Abraços
arabéns Ivo, pelo belo trabalho realizado, que proporciona Ao mesmo tempo conhecer Pedro Nava na sua realidade cotidiana e também as históricas ruas do Rio antigo.
As descrições do mesmo em relação aos antigos locais de prostituição e suas misérias e tragédias reabrem uma janela no tempo e fazem pensar na situação atual do Rio de Janeiro, onde uma espécie de “prostituição “ penetrou até nos mais elevados rincões do poder político.
Onde será que suas pesquisas nos levarão no próximo trabalho?
Desde o seu vídeo do passeio pelo Morro da Conceição já fico aguardando o próximo, certamente como a maioria que acompanha suas publicações.
Abraços
Parabéns professor Ivo. Do escritor Pedro Nava só havia lido "Baú de Ossos'. Esse seu texto sobre o nosso Rio antigo seguindo seus passos, é simplesmente maravilhoso.
Um abraço! Guilherme Peres
Meu caro Ivo, sempre nos encantando com a antiga alma carioca e seus passeios. Paraabens !
Eu morei nas "ruínas de muro" mais conhecida como Rua Taylos n° 159, morei nessa casa durante 16 anos da minha vida pode não parecer mas era uma casa bem grande e por anos eu e maus 7 irmãos moramos nela, hoje fazem quase 10 anos desde que me mudei mas, passei momentos muito felizes ali! Muito legal vê-la em um blog, essa casa tem uma fundação tão antiga que grande parte desta fachada é feita com "cimento" de óleo de baleia, a casa ja pegou fogo a muitos anos atrás e o terreno ao lado fazia parte da casa porém, os boatos dizem que desmoronou com o incêndio e com o tempo, essa casa é bem grande, tem uns 4 andares se contar com o "porão".
Queria saber mais sobre este endereço, amei ler este artigo.
Magnífica publicação. E que valor histórico tem esses textos. De 1957 a 1964, morei na Rua Pinto Martins (situada junto a Escadaria Selaron). Estudei na Escola Deodoro.
Ainda criança e adolescente, percorri essas ruas, mas não tinha essa olhar detalhista do Pedro Nava. Agora com 74 anos, pude voltar alegremente ao passado e novamente andar virtualmente nesses caminhos. Parabéns pelo belo trabalho.
Arildo Pascoal
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