desapegadas das coisas supérfluas |
Dizem que algumas pessoas ao passarem por situação de morte iminente e sobreviverem, se transformam interiormente. Passam a levar a vida de forma construtiva, valorizando os demais seres humanos, buscando a paz, a alegria, o amor e desapegadas das coisas supérfluas. Disse, apenas algumas pessoas!
O mesmo ocorre nas grandes tragédias produzidas pela ganância humana e governos desumanos como as guerras. Ou, as catástrofes das chuvas, terremotos, tsunamis, erupções de vulcões, derretimento das geleiras, incêndios nas florestas e tantas outras hecatombes. Alguns países, estados, municípios e suas populações se transformam, após o serenar da tragédia, e fazem ações reconstrutivas materiais e, principalmente, humanas. Passam a viver um novo tipo de governo responsável e de sociedade mais justa e solidária.
O mesmo ocorre na Cidade Maravilhosa, após as tantas tragédias que a vitimam e a sua população? A história tem mostrado que governantes e sociedades se contentam com o tampão de esparadrapos na grande, fétida e horrorosa ferida, que aparece exposta pelas tragédias.
Vamos nos restringir às sucessivas epidemias que ocorrem e destroem vidas ao longo de nossa história. Os colonizadores trouxeram: a sífilis, tuberculose, varíola, lepra, a febre epidêmica, a guerra com arma de fogo e o regime da escravidão. Dizimaram milhares e milhares de índios e índias do Brasil e africanos trazidos e vendidos como escravos.
regime da escravidão |
As doenças que aparecem externamente no corpo do enfermo foram sempre as que mais resultaram em pedidos da sociedade por ações concretas dos governantes para saná-las.
A lepra grassou já no século XVII e apavorou a sociedade convencida de que era doença transmissível. O governador Gomes Freire de Andrade (1733-1782) construiu, precariamente, o primeiro hospital destinado aos lázaros, em São Cristóvão. Os governos seguintes ampliaram e aperfeiçoaram as instalações do Lazareto. Foi uma ação positiva e permanente dos governantes.
as instalações do Lazareto |
Surtos epidêmicos de varíola ocorreram sucessivamente ao longo dos séculos XVII ao atual XXI. A partir do final do século XVIII começa a aplicação da vacina, principalmente, nos escravos. Também a sífilis, o sarampo, doenças intestinais, gripes diversas, febres, escorbuto e erisipela ceifaram muitas vidas e são fartos os registros e relatórios das ações dos governantes e, principalmente, dos profissionais de saúde. Geralmente as ações eram voltadas para as doenças que mais apareciam negativamente, junto à população. Nunca eram atacadas as causas.
Iniciamos o Quadro de Óbitos no município do Rio de Janeiro, em 1903, por ser um ano marcante, para os estudiosos da questão Sanitária. O médico Oswaldo Cruz foi nomeado para dirigir o combate à principal epidemia (!) que grassava na cidade carioca: a Febre Amarela.
No entanto, podemos verificar que a Febre Amarela – “principal epidemia” (!) – estava em oitavo lugar entre as dez maiores moléstias que ceifavam vidas na Cidade Maravilhosa.
1) Tuberculose pulmonar = 2.736 mortos.
2) Moléstias do aparelho digestivo (a maioria de crianças) = 2.303 mortos.
3) Moléstias do aparelho circulatório = 2.077 mortos
4) Moléstias do aparelho respiratório = 1.597 mortos
5) Moléstias do sistema nervoso = 1.521 mortos
6) Varíola = 805 mortos
7) Paludismo agudo = 599 mortos
8) Febre Amarela = 584 mortos
9) Gripe = 490 mortos
10) Moléstias do aparelho urinário = 421 mortos
Para entendermos ─ se for possível ─ a “Escolha de Sofia” da Febre Amarela (584 mortos) em detrimento das demais nove moléstias que somam 12.549 mortos, perguntamos: quem foram os agentes políticos, econômicos, intelectuais e cientistas, do setor imobiliário e da imprensa, que se reuniram para determinar o enfrentamento da Febre Amarela, e não outras doenças mais letais, como a tuberculose?
enfrentamento da Febre Amarela |
A população do município do Rio de Janeiro, em 1903, era cerca de 750 mil pessoas com parte vivendo na pobreza, passando fome, sem trabalho e enfurnada em aglomerações de habitações precárias, nas favelas, nos cortiços e casas de cômodos. No centro da cidade haviam se formado duas favelas: uma no morro de Providência, a primeira do Rio, e a outra no morro de Santo Antonio, no largo da Carioca. Esses morros, quando se inicia sua ocupação desordenada, possuíam cobertura vegetal arbórea e os terrenos eram espaçosos, permitindo que fosse feito loteamento popular para abrigar essa população. O custo dessas obras era inferior às do porto, da abertura de avenidas e outras obras de visibilidade política. Propostas nesse sentido foram feitas por engenheiros e arquitetos e alguns políticos. No entanto, as autoridades e seus apoiadores preferiram “sanear” a paisagem do centro da cidade mandando incendiar a favela de Santo Antonio e enviar os desalojados para engrossarem a favela de Mangueira – trecho denominado Santo Antonio.
Quem eram os seus moradores: parte dos velhos libertados pela Lei dos Sexagenários, conhecida como Lei Saraiva Cotegipe (13/09/1885), e da Lei Áurea (13/05/1888) que não contemplaram garantia de emprego e nem habitação para esses libertos. Tinha imigrantes portugueses, italianos e espanhóis, população rural vinda do interior do Estado, do Nordeste, do Espírito Santo e de Minas Gerais. Os desempregados e desabrigados pelas demolições dos cortiços e das casas de cômodos; soldados desertores, marginais, prostitutas e famílias pobres de trabalhadores, completavam o perfil populacional daquela favela. Ambiente propício para a tuberculose, a varíola, para as moléstias do aparelho digestivo e também para a febre amarela.
O primeiro quartel do século XX foi de grandes obras de urbanização da cidade, a construção do porto e das avenidas Central (atual Rio Branco), Francisco Bicalho, Rodrigues Alves e Beira Mar. A derrubada de morros, como o do Senado e do Castelo – crime do governo Carlos Sampaio contra o patrimônio histórico da cidade. Obras que não previram o assentamento da população pobre que habitava essa área, da qual foi expulsa.
O exemplo dessa mentalidade cruel que isola o fato de seu contexto foi a reurbanização da Quinta da Boa Vista. Era preciso concluir o projeto do paisagista Glaziou! Maravilha aplaudida por todos. Acontece que ao longo dos anos foram construídas moradias no terreno da Quinta, com a permissão do Imperador Pedro II e dos militares comandantes dos quartéis instalados na área. Eram cerca de 140 casas cujos moradores foram expulsos, sem indenização, por não serem donos dos imóveis. Em março de 1910 o ministro da Guerra comunicou ao da Viação que as casas habitadas por praças do 13o Regimento de Cavalaria, estavam desocupadas.
No mesmo ano surgiram barracos na encosta do morro do Telégrafo voltada para a Rua Visconde de Niterói e essa ocupação foi denunciada pela imprensa alertando as autoridades para o surgimento de uma nova favela no morro. A Prefeitura enviou o fiscal da região e um de seus engenheiros para verificar o que estava ocorrendo. O engenheiro vistoriou 12 barracos, constatou suas condições impróprias para moradia e que feriam as posturas municipais. Propôs que a Prefeitura construísse casas operárias para aquela gente em terrenos próximos ao morro.
Em maio de 1910 os moradores dos barracos foram convocados a comparecerem à sede da Prefeitura para a legalização dos barracos. Os invasores continuaram no morro do Telégrafo e não foram construídas as casas proletárias conforme proposta do técnico consciente.
Oito anos depois, 1918, já havia na batizada favela de Mangueira 49 barracões! Assim surgiu a imensa favela premiada por sua Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
favela de Mangueira |
As estatísticas da cidade do Rio de Janeiro, para o ano de 1914, registraram que 13.601 pobres moravam em 2.564 barracos espalhados pelos seus morros. A população total do município era estipulada em torno de 960.000 pessoas.
O combate e erradicação da febre amarela, ação positiva e elogiável, que teve todo apoio do governo federal e municipal – a cidade do Rio era a capital do Brasil – não teve investimento para eliminar as causas das demais epidemias. Nada foi feito para universalizar o esgotamento sanitário e o fornecimento de água potável para toda a cidade e sua população. A rede hospitalar e de postos de saúde cresceram inferiormente à demanda. O transporte público de massa dependia exclusivamente das linhas férreas construídas no Império: a Central do Brasil – nome republicano da antiga Pedro II – e da Leopoldina, que permitiram o crescimento da cidade para os subúrbios da Leopoldina, Zona Norte e Oeste. A malha mais urbanizada era atendida pelas linhas de bonde, em sua maioria pertencente à Light. Os fotógrafos registraram os bondes superlotados de passageiros.
linhas de bonde |
A tuberculose, ou Peste Branca, exigia para seu tratamento: o isolamento do doente por vários meses, em local saudável, de bom clima, de preferência frio, arejado e ensolarado. Mas, o principal, era o doente ingerir alimentação saudável. A população pobre, e mais ainda os doentes, não tinham condições de realizar nenhuma das recomendações sanitárias, dependendo totalmente do poder público. Que por sua vez lavou as mãos para, higienizado, cuidar da Febre Amarela.
Os que tinham posse e estavam doentes, ou não, possuíam casas ou viajavam para a Europa, Petrópolis, Friburgo, Campos de Jordão e balneários mineiros. Os novos bairros do Leme, Copacabana e Ipanema eram oferecidos como o paraíso saudável do viver à beira-mar, respirando ares benéficos das brisas marítimas.
ares benéficos das brisas marítimas |
Essa postura de ação pontual do poder púbico apoiada pela parte da sociedade dos não pobres se repetiu no enfrentamento da peste bubônica, ou Peste Negra, e da Gripe Espanhola, ou Influenza. Todas erradicadas com sucesso pelas ações públicas. A varíola também teve muito reduzida sua mortalidade.
A relação das 10 maiores “causa mortis” do ano de 1903, já visto anteriormente, para o ano de 1920 sofreu variações significativas: a Febre Amarela foi extinta e aparece com zero de registro. A Varíola teve apenas 4 óbitos o que indica sua breve extinção. A outra moléstia que caiu foi a do sistema nervoso que era de 1.521, descendo para 1.102. As demais moléstias subiram, sendo a do aparelho digestivo a que mais aumentou: de 2.303 para 5.235 mortos, passando a ser a primeira entre as dez maiores causadoras de óbitos. A tuberculose continua alta com 4.641 óbitos, ficando abaixo da Moléstia do aparelho digestivo.
Voltamos à pergunta inicial: a cidade do Rio de Janeiro foi liberta de suas moléstias causadoras de alto índice de mortalidade?
O MUNDO GLOBALIZADO DO COVID–19
O município do Rio de Janeiro, nesse ano de 2020, com a população estimada de 6.700.000 pessoas, apresenta deplorável quadro econômico (desemprego e subemprego), social com cerca de 1.300.000 moradores em favelas (em 1920 eram estimados 200.000 favelados) e loteamentos clandestinos precários. Os serviços públicos de saúde, educação, segurança e transporte de massa foram sucateados ou mal planejados ao longo dos 100 anos (1920-2020) e já não atendem à população usuária.
Mais grave é a poluição dos cursos d’águas, das lagoas e de toda a Baía de Guanabara e o desmatamento dos morros e das reservas florestais. Tão grave é o deficiente fornecimento de água potável, pela CEDAE, descartando mais de 30% da população, quanto o do esgotamento sanitário tratado, que atende abaixo desse outro serviço. Somando-se ao problema do lixo residencial, industrial e hospitalar cuja coleta não é universal, podemos afirmar que chegamos ao caos carioca.
Para agravar mais ainda o enfrentamento do COVID-19 – mais uma vez pontual e resultado da “Escolha de Sofia” – as velhas moléstias mortíferas continuam – a volta da febre amarela e do sarampo ─ acrescidas de novas moléstias de caráter nacional, que, em 2018, apresentaram os seguintes números de infectados e de mortos, no Brasil: dengue (240.000 /142); chikungunya (84.000 / 35) e a zica (8.024 / 4). Só nos resta rezar!
COMO REAGIR APÓS A TRAGÉDIA
Voltando ao início e acreditando que algumas pessoas, sociedades e governos se transformam para o bem depois de experiências trágicas, vamos sugerir ações duradoras para mudar as causas que nos levaram ao fundo do poço.
Suspender o pagamento de juros da dívida pública brasileira – a interna e a externa fecharam o ano de 2019 no astronômico valor de R$ 4,249 trilhões de reais – e instituir grupo de especialistas para auditá-la. Quem possui essas cotas são os que possuem excedentes financeiros. Portanto, não vai pesar muito em seu bolso. O FMI já suspendeu o pagamento de países pobres. O STF brasileiro suspendeu o pagamento de juros da dívida dos estados à União.
1) Rever as taxas incidentes do Imposto de Renda sobre a renda dos brasileiros.
2) Fazer a Reforma Tributária reduzindo o número de impostos e reduzindo alíquotas.
3) Fazer a Reforma Administrativa, fortalecendo e valorizando o serviço público. Acabar com a discrepância salarial entre os três poderes e estabelecer que todos os servidores tenham as mesmas regras de aposentadoria e de férias.
4) Fazer a Reforma Política. Aproveitar que terá de se adiar as eleições para prefeitos e, por isso ampliar seus mandatos para cinco anos, estender para os demais cargos de governadores e presidente e extinguir a REELEIÇÃO para o executivo.
5) Fazer as eleições para o Poder Legislativo antes do Poder Executivo para que elejamos parlamentos livres e independentes do Executivo. Reduzir o mandato de senadores para cinco anos e acabar com as suplências.
Construir um pacto federativo entre governo e sociedade para que todos os governos dediquem suas propostas e ações voltadas para a Educação, a Saúde, para o Transporte de passageiros e de carga eficientes. O saneamento sanitário e o abastecimento de água potável em todos os municípios brasileiros. Despoluir os rios, lagoas e mares, reflorestar as áreas degradadas e fiscalizar rigorosamente o meio ambiente.
Fazer o grande mutirão nacional para construção de habitação para cada família brasileira que hoje esteja vivendo em condições inadequadas.
Abril de 2020 – era do Coronavirus (COVID–19)
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