Todo ano faço aqui neste blog uma crônica do Carnaval,
para recordar quando ficar velhinho (aos 65 anos estou longe disso). O Carnaval
da Sapucaí vocês devem ter visto na televisão. O maior espetáculo da Terra,
feito por gente humilde, do morro. O paradoxo brasileiro. Mas em época de crise
sai mais em conta o Carnaval de rua. Ano após ano o Carnaval nos logradouros
cariocas se agiganta. A cidade vira um enorme parque de divertimento. Com a
nova orla no Centro, o VLT e a Rio Branco repaginada o Centro ganhou vida nova,
e no Carnaval isso ficou ainda mais patente. As ruas são do povo como o céu é
do condor. Este ano, com o Carnaval caindo no final de fevereiro, quando o auge do calor já havia passado, deu para curtir a folia diurna (sem o "sol inclemente" da crônica abaixo). Chegou até a chover um pouquinho no domingo. Engraçado ver o Centro, por onde geralmente circulam pessoas sérias em seus afazeres diários (ou turistas), tomado de assalto por foliões fantasiados. As fotos contam o resto. E vai de quebra texto de Lima Barreto sobre
o Carnaval, publicado originalmente no Correio da Noite no início de
1915 e que O Globo reproduziu quatro dias atrás junto com mais quatro
textos de grandes escritores sobre os festejos de Momo. Para acessar clique aqui.
Filhos de Gandhi na Zona Portuária |
O MORCEGO, de LIMA BARRETO
O carnaval é a expressão da nossa alegria. O ruído, o
barulho, o tantã espancam a tristeza que há nas nossas almas, atordoam-nos e
nos enche de prazer.
Todos nós vivemos para o carnaval. Criadas, patroas,
doutores, soldados, todos pensamos o ano inteiro na folia carnavalesca.
O zabumba é que nos tira do espírito as graves
preocupações da nossa árdua vida.
O pensamento do Sol inclemente só é afastado pelo
regougar de um qualquer Iaiá me deixe.
Segunda-feira: roda de samba na Pedra do Sal |
Segunda-feira: concurso de turmas de fantasia na Cinelândia |
Há para esse culto do carnaval sacerdotes abnegados.
O mais espontâneo, o mais desinteressado, o mais lídimo
é certamente o Morcego.
Durante o ano todo, Morcego é um grave oficial da
Diretoria dos Correios, mas, ao aproximar-se o carnaval, Morcego sai de sua
gravidade burocrática, atira a máscara fora e sai para a rua.
A fantasia é exuberante e vária, e manifesta-se na
modinha, no vestuário, nas bengalas, nos sapatos e nos cintos.
E então ele esquece tudo: a pátria, a família, a
humanidade. Delicioso esquecimento!... Esquece e vende, dá, prodigaliza alegria
durante dias seguidos.
Nas festas da passagem do ano, o herói foi o Morcego.
Passou dois dias dizendo pilhérias aqui, pagando ali;
cantando acolá, sempre inédito, sempre novo, sem que as suas dependências com o
Estado se manifestassem de qualquer forma.
Ele então não era mais a disciplina, a correção, a lei,
o regulamento; era o coribante1 inebriado
pela alegria de viver. Evoé, Bacelar!
Jovens foliões |
Jovem folião |
Essa nossa triste vida, em país tão triste, precisa
desses videntes de satisfação e de prazer; e a irreverência da sua alegria, a
energia e atividade que põem em realizá-la, fazem vibrar as massas panurgianas2 dos respeitadores dos preconceitos.
Morcego é uma figura e uma instituição que protesta
contra o formalismo, a convenção e as atitudes graves.
Eu o bendisse, amei-o, lembrando-me das sentenças
falsamente proféticas do sanguinário positivismo do senhor Teixeira Mendes3.
A vida não se acabará na caserna positivista enquanto os
“morcegos” tiverem alegria...
Correio da Noite, Rio, 2-1-1915.
1 Sacerdote da deusa romana Cibele, que dançava ao som de flautas, címbalos
e tamborins.
2 Aquele que segue cegamente um chefe.
3 Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), pensador brasileiro, líder do
Apostolado Positivista.Saxofonista do Favela Brass Project em canja na Heineken Jazz Fest na Rua do Lavradio |
Terça-feira: Concurso de turmas de bate bola na Cinelândia |
A praça é do povo... |
Mascarada |
Nenhum comentário:
Postar um comentário