TEXTO ESCRITO PELO HISTORIADOR NIREU CAVALCANTI EM 20 DE DEZEMBRO DE 2016 E ENVIADO AOS AMIGOS, ENTRE OS QUAIS TENHO A SORTE DE ESTAR
Pessoal
amigo
Venho
há muito tempo tentando trazer para a reflexão na mídia essa farsa do “Cais do
Valongo” destinado ao desembarque de escravos. Assim, trago algumas de minhas
conclusões sobre a questão resultantes de árduas pesquisas.
O
comércio de escravos (os armazéns) no Valonguinho (a primeira parte da imensa
praia que se estendia da Pedra do Sal até o morro da Saúde), seguida da parte
chamada de Valongo, transferiu-se para a região por iniciativa da Câmara de
Vereadores, dos comerciantes de grosso-trato não envolvidos com o comércio
negreiro, dos cirurgiões e médicos, dos profissionais de engenharia e
arquitetura, a partir de janeiro de 1758.
Naquela época acreditava-se que as epidemias
que grassavam na cidade tinham origem nos armazéns situados na área central –
região do entorno da atual Praça XV – condição incompatível, segundo os
contemporâneos, com cidade do porte e da importância do Rio de Janeiro.
Alguns
negociantes negreiros entraram no Tribunal da Relação questionando se procedia,
de fato, a relação entre as epidemias e os armazéns de escravos. O processo
arrastou-se naquele Tribunal, mas por decisão do vice-rei Marquês do Lavradio,
aqueles comerciantes foram obrigados a se deslocar a nova região demarcada pela
Câmara de Vereadores.
O
comércio negreiro no Valongo teve sua duração de 1760 até 1830, ano em que o
tráfico negreiro efetivamente já estava reduzido. Para alcançar 1.000.000 de
escravos seria necessário que entrassem mais de 14 mil escravos por ano. Os
livros da Alfândega durante o século XVIII registram no máximo 11.000 em alguns
anos (cerca de cinco).
Com
a chegada da Corte e assinatura de tratado comercial com a Inglaterra, um dos
seus itens estabelecia o compromisso da monarquia portuguesa iniciar a redução
do tráfico negreiro, até sua total extinção (que só veio a ocorrer em 1850). Os
comerciantes negreiros apressaram-se, então, em trazer mais escravos. Registros
na Alfândega para os anos de 1810 e 1811 mostram a chegada de 20.000 escravos,
em cada ano.
O
cais da cidade (da Misericórdia até o Arsenal da Marinha) ficou incompatível
com a demanda oriunda da abertura dos portos do Brasil, pelo príncipe regente
D. João, ao comércio com as nações amigas. O número de navios mercantes
estrangeiros aumentou significativamente, além dos navios originários do
crescimento do comércio interno entre as províncias.
Na
última década do século XVIII os comerciantes que usavam os portos do interior
da Baía de Guanabara, principalmente os negociantes de Minas Gerais,
solicitaram permissão para construírem, às suas custas, um cais na região do
Valongo, ou Gamboa. Argumentavam sobre o prejuízo que tinham com a pequenez do
“Cais dos Mineiros”, vizinho à Alfândega. Foi negado o pedido pelo vice-rei conde
de Resende, sob o argumento de que seria perigoso incentivo ao contrabando de
mercadorias, principalmente de escravos.
Este perfeito mapa da
região (1791) do Valonguinho-Valongo mostra a Pedra do Sal (“Pedra da Prainha”)
avançando pelo mar da baía, interrompendo a ligação entre o trecho da Prainha
(atual Praça Mauá) e a marinha do Valongo. Assim como não registra nenhum cais
público, apenas os atracadouros dos diversos trapiches.
A ausência de cais
público ocorre neste mapa de 1808. Mostra a cidade que D. João encontrou quando
chegou.
Dom
João, em 1809, resolveu fazer um cais do Largo da Prainha até o morro da Saúde.
Foi feito o projeto, mas não tinha o Tesouro recursos para arcar com essa
despesa, principalmente fazer o corte na Pedra do Sal e indenizar todos os
proprietários que tinham trapiches, ou moradias e comércio ao longo desse cais.
A obra se arrastou por anos e a partir de 1821 já há citação documental de que
foram construídos parte do cais (muralha), algumas rampas
e degraus. É importante frisar que esse cais Joanino destinava-se aos navios
mercantes, não negreiros. Os escravos continuavam a desembarcar, serem
cadastrados e pagos os impostos na Alfândega [atual Casa França-Brasil], como registra Rugendas em 1828.
Esta aquarela de
Thomas Ender (c. 1818) mostra a Pedra do Sal ainda em processo de corte e a
praia do Valonguinho-Valongo sem cais.
Neste mapa (1829)
observamos que o corte da Pedra do Sal foi totalmente realizado e feito para a
nova urbanização da orla, registrando ainda o aparecimento de vários atracadouros
e novos trapiches ao longo de toda a marinha.
Gravura de Rugendas
(1828) mostrando o processo de chegada dos escravos novos na Alfândega.
Uma
grande obra de renovação, ampliação e embelezamento do cais do Valongo foi
realizada para o desembarque da imperatriz Theresa Cristina (03/09/1843),
esposa de D. Pedro II.
Mapa de 1844, um ano após a
construção do cais da Imperatriz (Praça Municipal), mostra a nova zona portuária
da cidade do Rio de Janeiro.
Portanto,
o cais descoberto na região do Valongo e que poderemos ter a felicidade de
visitar é o construído para aquele importante marco político-histórico no
Brasil.
O
tombamento da região do Valongo como Patrimônio da Humanidade é mais do que
recomendável: zona do comércio negreiro, abrigo do campo santo dos escravos
novos. O cemitério lá se encontra, sob várias construções da Rua Pedro Ernesto
– a antiga rua do Cemitério ─, além de ter sido o cenário vivo da união das
nobrezas europeias: os Bourbon e os Bragança, nos trópicos e continente
Americano.
Cabe,
por fim, destacar que o Brasil é o único país da América que foi reinado e
império.
Grandjean de Montigny: Projeto
de fonte comemorativa da chegada da imperatriz D. Theresa Cristina. (1843).
Observação: todos os
mapas e iconografias pertencem ao Acervo da Biblioteca Nacional e podem ser
acessados no seu portal digital.
6 comentários:
Muito interessante matéria Professor Nireu.
Sou Guia de Turismo da Cidade do Rio de Janeiro e sempre estou passando pelo Cais do Valongo e contando sua história. Conta a História escrita nos totens informativos que existem no local.
Com certeza usarei suas observações em relação ao número de escravos desembarcados na cidade, assim como as informações sobre o corte da Pedra do Sal.
Obrigado pelas informações.
acho que Nireu deveria ler a tese de Pós Doutorado de CARLOS EUGÊNIO LÍBANO SOARES, VALONGO, CAIS DOS ESCRAVOS, Arqueologia, Museu Nacional 2013 publicada pela CEDURP em seu site e entregue para o representante da UNESCO no Brasil no processo de tombamento que afinal foi uma grande vitória. A tese tambem esta no site do MUSEU NACIONAL UFRJ, PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA e verá os documentos comprobatórios da candidatura na UNESCO. Obrigado.
Anônimo, Nireu conhece muito bem o Carlos Eugênio Líbano e os escritos dele. O seu argumento retórico (de autoridade, no caso, alheia) não convence. Você mesmo precisa argumentar com evidências e fontes se discorda do que está aqui postado e não remeter justamente as fontes que Nireu refuta como precisas.
Caro Anônimo, assim que tiver uma oportunidade, vou ler o artigo do Carlos Eugênio, cotejar com as posições do Nireu, e tentar chegar a uma conclusão. De qualquer maneira, o Nireu é a maior autoridade viva sobre o Rio colonial, autor de uma obra clássica a respeito. Atenciosamente, Ivo Korytowski.
Em um debate com ambos presentes (Nireu Cavalvanti e Carlos Eugênio Líbano) realizado no Arquivo Nacional, Carlos afirmou que os engenheiros propositadamente deixaram de assinalar o "cais do Valongo" nos mapas antigos. Nireu replicou: "eles fizeram isto para que você, anos depois, não pudesse comprovar a sua tese?"
O argumento de uma suposta atribuída preocupação com a posteridade (além de frágil argumento, para dizer o mínimo, um anacronismo) e por essa razão retiraram a referência dos mapas confeccionados é curioso. Não se sustenta.
Penso que é mais do que legítimo e necessário o estabelecimento de um marco (ou vários marcos) na cidade que rememore(m), ensine(m) e divulgue(m) a tragédia que os africanos e seus descendentes sofreram. A área do Valongo deve ser preservada, claro. Mas a História também. Mais do que "atirar uma flecha e depois pintar um alvo em volta", mais do que o desejo que materializar no achado arqueológico o símbolo do que se desejava, a despeito das evidências ou ausências dessas evidências, fazer literatura e apresentá-la como História não me parece contribuir ou pior, se necessário.
Caro anônimo, só agora tive oportunidade de ler a tese de CARLOS EUGÊNIO LÍBANO SOARES e chego à conclusão de que tanto o prof. Nireu quanto o prof. Carlos têm razão. A chave da questão está nesta instrução (que consta da tese do Carlos) do Marquês de Lavradio para seu sucessor: "Foi a resolução ordenar que todos os escravos que viessem nestas embarcações, logo que dessem sua entrada na Alfândega, pela porta do mar, tornassem a partir e embarcassem para o sitio chamado Valongo, que é no subúrbio da cidade separados de toda comunicação e que ali se aproveitassem das muitas casas e armazéns que ali há para os terem e que àqueles sítios fossem as pessoas que os quisessem comprar [...]" O professor Nireu tem razão quando insiste em que os escravos desembarcavam no Cais dos Mineiros e passavam pela Alfândega (atual Casa França-Brasil), e o Carlos também tem razão, uma vez que lá da Alfândega eles reembarcavam e voltavam a desembarcar no Valongo, conforme a instrução do próprio marquês que não queria que aqueles escravos nus semelhantes a "brutos selvagens" fossem vistos pelas senhorinhas e criancinhas.
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