Pedro Nava, Cera das almas (último livro de memórias, inacabado)
No prédio com portão maciço de ferro e vidro, fachada de mármore no térreo e amplas janelas envidraçadas no corpo abaulado, no estilo Art Déco tão típico da geração de prédios cariocas da década de 30 — entrada descaracterizada por grade de ferro recentemente instalada para espantar mendigos e ladrões — a placa indica (mas os transeuntes, apressados, não prestam atenção):
1903-1984
Médico, escritor e poeta
Mineiro de Juiz de Fora,
aqui residiu entre 1943 e 1984.
Sua obra destaca-se no panorama cultural brasileiro.
Pouco adiante, vestígios grafitados de antigo chafariz colonial, onde escravos, barris equilibrados à cabeça (imagino), vinham pegar água — bons tempos? Ambulantes oferecem quinquilharias: velhos vinis, revistas de mulher nua pra lá de amassadas (quantas punhetas já inspiraram!), software pirata, incensos, caquis de um vermelho que fere a vista (dois reais a caixa). Cãozinho, preso ao poste por corda, dormita.
Outro lado da rua, a amurada, de onde podemos imaginar Camilo olhando para o mar, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, em "A Cartomante" — e o famoso relógio da Glória, que orna as capas dos livros de memórias do Nava na edição da Nova Fronteira (e que aparece também na foto de Nava da quarta capa do volume 5 das memórias, na edição original da José Olympio). Atualmente nem sinal do mar, empurrado pra bem longe dali.
Na banca de jornais, Syang exibe os dotes físicos no cartaz da Status. Discreto a um canto, o apontador do jogo do bicho, velhinho de cabelos brancos. Verde das frondosas árvores contra o brancoazul celeste. A esse caleidoscópio de cores vêm se juntar as listras laranja das camisetas de grupo de alunas da escola municipal próxima.
Pouco depois do ponto final do Glória—Leblon, via Copacabana, fica o ponto da Kombi que leva a Santa Teresa. A rigor, deveria sair de quinze em quinze minutos, mas não estamos em Londres, are we? E enquanto restarem lugares vazios o motorista se verá tentado a esperar só mais um "minutinho" pra ver se a Kombi lota. Ganhar a vida não é brinquedo não.
Antes da partida, um auxiliar (às vezes, o próprio motorista) cobra as passagens — dinheiro, um e trinta; vale-transporte, um e cinqüenta.
No pára-sol aberto do lado do "carona", os dizeres edificantes: "Entrega tua vida a Jesus. Confia nele e o mais ele fará." Vai contar isto a um prisioneiro de campo de concentração. Menino, dois incisivos faltando, chupa pirulito com a mesma verdade com que a pequena suja comia chocolates no poema do Pessoa.
Na hora de pagar, uma velhinha mirrada, coque prateado, mas ainda transbordando vitalidade, brinca com o cobrador:
— Você fica explorando a velhinha — e, logo em seguinte, abre um sorriso. O cobrador sorri de volta. A velhinha entrega nota amarfanhada de um real, e umas moedas. (A rigor, a velhinha deveria ser dispensada do pagamento, mas no transporte alternativo essas regras nem sempre são observadas.)
— Tenho 82 anos — revela a velhinha. — Está na hora do Homem lá em cima me chamar.
— Pra 82 anos a senhora até que está ótima — elogia uma passageira.
Parte a Kombi. Dobra à direita e sobe o início da Cândido Mendes. Caminhão de lixo atravanca a entrada da Hermenegildo. Alguém resmunga:
— Neste país não tem lei, não tem nada, e mesmo que tiver, ninguém obedece.
A Kombi segue o mesmo percurso que Nava costumava fazer a pé, e narra com detalhes em Galo das trevas:
A velhinha põe-se a contar que, dia desses, tropeçou e caiu; culpa da sandália, de plástico. Na terra onde nasceu (e aí ela abre um parêntese e conta que nasceu em Sergipe) as sandálias eram de couro. Velhinha arretada!
Da vida nada se leva. A velhinha vive sua vida humilde, mas se tem o que comer, já é bom demais. Os filhos, criados, lhe deram netos, bisnetos. Mês passado, a filha, que mora em Aracaju, veio visitar a mãe, e foi logo reclamando da casa.
— Achou a casinha pequena demais. Por que não aluga um apartamento pra mim aqui na Glória? Filho, hoje em dia, só quer saber de bater papo. "Mãe, como é que está? Mãe, tudo bem?" Sabe de uma coisa? Quem bate papo é sapo. Dinheiro mesmo que é bom, pra ajudar, os filhos nem dão.
Quem acompanha o blog desde o princípio lembrará que esta foi a postagem número 1, de 17/7/05. Agora foi reformatada e ganhou fotos novas.
10 comentários:
caro IVO, esatrei divulgando seu blog e seu amor pelo RIO em nosso blog/telescopio, com a maior satis
fação. Fico feliz ao ler sua crônica,pois também sou admirador do saudoso PEDRO NAVA.
Oi, Ivo!
Adorei as marinhas e os poemas de Isabel e da Maria Thereza! Deixei meus comentários em suas páginas sobre Pedro Nava e o Callaça, insubstituíveis traços, sobre o Rio de Janeiro. Amamos os dois! Parabéns!!! Como fazer p/a ler todos os comentários?
EH PHANTASTICO!
A ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS TEM QUE TOMAR CONHECIMENTO DE TI, IVO !
Caríssimo
o blog incorpora a alma desta cidade,ainda e sempre (para sempre) maravilhosa!
bjs
Adriana
É, já subi muitas vezes e desci as ladeiras da Glória que dão em Santa Teresa.E já tomei choppinho e cervejas várias nos bares das esquinas, quase que caindo na Lapa.Só assim dá pra conhecer melhor a alma do bairro.Legal!!!
Prezado Professor Ivo
Que legal a matéria sobre o Pedro Nava!Muito legal,mesmo!!!
Abraços
Siomara de Cássia Miranda
Ótimo post sobre o Nava, Ivo, um prosador genial. Foi bom V. fotografar aquele inacreditável Buda amarelo que algum imbecil pintou bem em cima da cartela de lioz do Chafariz da Glória. Até a minha adolescência, dava para ver toda a inscrição latina da mesma, agora nem se percebe que ali houve uma inscrição. É no que dá anos de raspagens de pichações sobre um bloco de mármore do século XVIII. É de causar engulhos em qualquer um! (enviado por e-mail)
Pode-se dizer que Nava era um belo exemplo de alguém hóspede de si mesmo.
Obrigado pela homenagem, colocando meu comentário no cabeçalho do seu blog. Valeu!!!
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