INTRODUÇÃO DO EDITOR DO BLOG
Quando publicou este texto, em 25 de outubro de 1896, Vieira Fazenda vangloriou-se de ter sido uma das raras pessoas leigas que conseguiram entrar no Convento da Ajuda, situado no que viria a ser a Cinelândia, e ver o então impressionante Chafariz das Saracuras, obra de Mestre Valentim, de 1795, que ficava no pátio do convento. “Pena que tal monumento não possa ser apreciado, graças aos rigores da clausura”, lamenta o autor. A partir de 1911, com a transferência do chafariz para a Praça General Osório, Ipanema – em decorrência da demolição do convento na onda de modernização da Capital Federal – qualquer reles mortal que passasse pela praça pôde, e pode até hoje, ver o tão decantado (e até então misterioso) chafariz.
Só que na praça ele perdeu a água (secou), e as saracuras e cágados que o adornavam sumiram. Em 2010, por um breve período, Vera Dias, então na chefia da subgerência de monumentos e chafarizes da Prefeitura, conseguiu ressuscitar o chafariz, repondo as saracuras e cágados, e fazendo com que jorrasse água de novo. As fotos desta postagem são dessa época especial. Depois o chafariz voltou a secar e as saracuras sumiram de novo. Mas vamos ao texto do Vieira Fazenda porque ele, o decano da historiografia carioca, é o astro desta postagem, não eu, mero blogueiro carioca.
Chafariz das Saracuras, no Convento da Ajuda, no local que depois se tornaria a Cinelândia, demolido em 1911. O chafariz encontra-se na Praça General Osório, Ipanema. |
O CHAFARIZ DAS SARACURAS, por VIEIRA FAZENDA
Sempre respeitadas e dignas da consideração do nosso povo foram e são, sem engrossamento [=sem puxa-saquismo], atualmente as religiosas da Ajuda. Os poetas e poetastros de outrora as estimavam pela maneira por que eram tratados por ocasião das festas do Natal, quando elas, por entre as grades do convento, lhes atiravam motes, os quais, com prontidão rimados, eram seguidos de doces e guloseimas.
Nisso eram elas insignes. Quem não conhece os clássicos bolos da mãe-benta, os pastéis de Santa Clara e os brancos suspiros que ainda hoje fazem vir água à boca de muita gente!
Não venho tratar da história da fundação desse convento, no tempo do bispo d. João da Cruz, e inaugurado pelo bispo d. frei Antônio do Desterro, o qual foi muito auxiliado pelo depois célebre brigadeiro Alpoim, porque só a descrição das festas celebradas encheria toda a folha.
Hoje é de louvar-se o zelo com que as freiras da Ajuda vão aumentando o convento e restaurando a igreja da padroeira, muito danificada por ocasião da revolta [Revolta da Armada, que encheu a cidade de balas perdidas], e onde se encontra a mais bela e artística imagem da Senhora da Piedade desta cidade, cópia de outra muito célebre na Europa e que figurou na exposição de Munique, obra do famoso artista Sylvius Eberle. [De nada adiantou aumentar o convento, já que pouco depois foi destruído. As freiras passaram para o novo Convento da Ajuda em Vila Isabel - ver aqui).
Dando de mão [=abrindo mão] ao muito que poderia dizer sobre esse mosteiro, vou tratar de um assunto do qual nunca historiador ou cronista algum se ocupou, incluindo o sr. Moreira de Azevedo, que, aliás, minuciosamente descreveu o interior do convento: trata-se, nada menos, de um artístico e monumental chafariz, que eu chamarei das Saracuras, o qual está erguido no pátio central.
Construído de pedra do país, é um objeto de arte digno de ver-se, pois, mostrando o gosto da época, assinala a perícia dos nossos antigos canteiros [=artífices que lavram pedra de cantaria], e tem bonitos ornatos, fundidos em bronze (na Casa do Trem [hoje parte do Museu Histórico Nacional]), e um belo brasão trabalhado em mármore [que se vê até hoje na Praça General Osório].
Esse chafariz simboliza a gratidão das freiras para com o vice-rei, conde de Resende, que em 1799 concedeu mais um anel d'água, para uso do convento; tais pelo menos são os dizeres do brasão acima referido, onde se acha a inscrição comemorativa desse fato, encimada pelas armas daquele vice-rei.
Por quatro escadas de cinco degraus sobe-se para o embasamento, que é largo, e sobre o qual se apoia uma grande bacia circular, de cujo centro levantam-se quatro pedestais onde pousam outras tantas saracuras de bronze, as quais lançam pelos bicos na bacia límpida água, que desaparece para ser lançada de novo pela boca de quatro cágados que despejam em quatro tanques colocados nos espaços entre as escadas.
Tudo isso é coroado por uma pirâmide de três metros, em cujo ápice se vê uma cruz de ferro.
Pena que tal monumento não possa ser apreciado, graças aos rigores da clausura.
Aí fica porém a descrição, cabendo-me a glória de ter sido o primeiro a falar dessa obra de arte oculta aos olhos dos profanos, a qual leva sem dúvida vantagem às pesadas e enferrujadas fontes públicas inauguradas, há poucos anos, em nossas praças, fontes que primam pela ausência do precioso líquido tão decantado pelo poeta Silva Alvarenga nos versos dedicados a Luís de Vasconcelos! [APOQEOSIS POETICA, acessível aqui]
Jaz por terra o célebre chafariz das Marrecas [situado na então Rua das Belas Noites, atual Rua das Marrecas; as estátuas de Narciso e Eco do antigo chafariz encontram-se no Jardim Botânico] transformado em portão do quartel da brigada policial.
Já não se fala da Fonte dos Boiotas [“boiota” era a vítima de hidrocele, nada a ver com “boiola”; esta fonte situava-se na agora chamada Rua Silva Jardim, perto da Praça Tiradentes], nem nas águas férreas de Mata-cavalos [atual Rua do Riachuelo, onde ainda resta um velho chafariz, tombado pelo patrimônio, mas não é este aqui referido], da antiga Chácara da Bica.
A Carioca tristonha [chafariz do Largo da Carioca] pode dizer eu era assim (quando de suas trinta e seis torneiras jorrava a água em profusão) e estou ficando assim (servindo de pouso a vagabundos). Que pelo menos fique perpetuamente guardada pelo cuidado das religiosas da Ajuda a Fonte das Saracuras, salvo se alguma desapropriação por utilidade pública não vier arrancar o brasão do Conde de Resende, que parece não ter sido tão casmurro, nem tão mau administrador como se pretendeu.
Essa é a opinião do paciente investigador dos arquivos da Santa Casa da Misericórdia, onde se encontram provas do zelo, inteligência e perspicácia daquele vice-rei, que foi um dos melhores provedores da Misericórdia.
Por hoje, disse.
25 de outubro de 1896
Um comentário:
As reminiscências de Vieira Fazenda são elos preciosos da grande corrente que se faz com a história do nosso Rio, ainda não pacificado e por demais "descrivelado".
Mas sou esperançoso que trabalhos como o seu e do nosso estimado Professor Nireu, venham a "vingar" e tenhamos (pelo menos) um despertar de civismo e amor pela chão que nos acolhe.
Helio Brasil
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