ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

1.10.13

CARTOLA, O TROVADOR DO SAMBA

TEXTO DO ENCARTE DO DISCO CARTOLA DA COLEÇÃO NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (1977, diretor JOSÉ AMÉRICO M. PESSANHA, redator PAULO SÉRGIO M. MACHADO). FOTOS TIRADAS NO CENTRO CULTURAL CARTOLA PELO EDITOR DESTE BLOG. PARA  INFORMAÇÕES DE ENDEREÇO, HORÁRIO, COMO CHEGAR etc. CLIQUE NA GUIA CENTRO CULTURAL CARTOLA DO GUIA DO RIO NO CABEÇALHO DESTE BLOG.

Cartola, o trovador do samba

Durante muito tempo o cidadão Angenor de Oliveira viveu no mais completo ostracismo, como conta em seu poema Obscuridade. Ninguém o conhecia, ninguém sabia dele — num aparente absurdo, o próprio Angenor chegou a ignorar a existência de Angenor.

Na verdade, já o berço humilde em família grande e pobre parecia, desde o começo, destiná-lo ao anonimato. E mais: com as circunstâncias que cercaram sua educação, tudo indicava que sua única possibilidade de ser conhecido pelo público seria através das páginas de ocorrências policiais.

 Centro Cultural Cartola, na Mangueira

Angenor nasceu (a 11 de outubro de 1908) na rua Ferreira Viana, 74, no bairro carioca do Catete.

No Catete, Angenor fazia aparições públicas nos desfiles dos grupos de pastorinhas, que as famílias habitualmente organizavam no dia de Reis. Só que ninguém dizia: 

— Olha ali o Angenor! 

Sua presença, uma vez notada, dava lugar a comentários do tipo: 

— Vejam o diabinho! 

No bloco, as irmãs vestiam-se de ciganas e Angenor, de Satanás. Igualmente satânico o viam os professores e diretores das escolas por que passava. Foi expulso do Grupo Escolar Rodrigues Alves, no Catete, e de vários outros depois disso. 

Não tardou muito e a família pobre não pôde mais sustentar-se próximo aos bairros elegantes. Angenor tinha onze anos quando a família mudou-se para a primeira estação do ramal ferroviário suburbano: Mangueira.

O Centro Cultural Cartola abriga o Museu do Samba Carioca

Mas o novo bairro não trouxe sorte. Quatro anos depois, morria a mãe, Ada Gomes. Sem meios para cuidar das crianças, e cansado de levar o "diabinho" de colégio em colégio, o pai, Sebastião Joaquim de Oliveira, tomou uma decisão: chamou Angenor e mandou-o cuidar da própria vida.

Com quinze anos, solto no mundo (em Mangueira), sem ter onde dormir, o rapaz precisou arrumar um emprego (que ocupava os dias) e ingressar nas rodas de boemia e malandragem (que completavam as noites). Foi se chegando aos valentes de Mangueira (Maçu, Antonico) e, empunhando um violão, conseguiu lugar no Bloco dos Arengueiros, que desfilava nos carnavais. Em seu primeiro ano de vida solta, tentou compor um samba — Chega de demanda — que o pessoal achou medíocre. Mas os grandes estimularam-no a continuar.

Fluminense, time do coração de Cartola

Para ganhar a tal "vida solta", empregou-se numa tipografia. Mas tinha de trabalhar quieto, sem assobiar ou cantar — não era oficio para seu temperamento irrequieto. Segundo ele próprio, "queria era bagunça". O que fazer? Observando as construções, viu que os operários moviam-se muito, falavam à vontade, assobiando e mexendo com as moças que passavam...

— E às vezes até davam sorte! Aquilo sim que era emprego. 

Conseguiu trabalho, aprendeu a profissão de pedreiro. Tudo bem, Só um problema: o pó de cimento grudava na cabeça, ficava incomodando, difícil de sair. Um chapéu de folha de jornal, ou mesmo um boné, não pegariam bem, estragariam a estampa de Angenor. E ele tratou de ser elegante, arrumando, não se sabe onde, um chapéu coco, que passou a usar no trabalho. 

— Por que não usa uma cartola logo de uma vez? Ei, você aí de chapéu coco! Ei, você aí de cartola! Ei, Cartola!

... que bobagem, as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam, o perfume que roubam de ti...

Cartola cuidou do apelido. Toda noite escovava o chapéu para exibi-lo no dia seguinte do alto dos andaimes, olhando para as meninas que passavam e mexendo com elas. Pedreiro, sambista, boêmio, trabalhador — Cartola foi se ajeitando. Já se esquecera que era Angenor, o que, alias, só tinha descoberto recentemente, quando precisou da certidão de nascimento para casar:

— Angenor, ora essa! Sempre pensei que era Agenor. 

Na vidinha de todos os dias, Cartola começava a se ocupar cada vez mais das coisas de Mangueira. Nos fins da década de 20, os antigos blocos carnavalescos, prolongamento das rodas de samba dos morros cariocas, começavam a se organizar em sociedades permanentes. O Estácio, onde viviam os sambistas Ismael Silva, Brancura, Alcebíades Barcelos, Edgar Marcelino dos Passos e Nílton Bastos, tomou a iniciativa, fundando uma associação com o significativo nome de "Deixa Falar" que, com justificada pretensão, apresentava-se como uma "escola de samba". 

Taí: escola de samba. Os desorganizados blocos gostaram da ideia. E Estácio e Mangueira eram amigos de longa data. Nas segundas-feiras de carnaval, a Deixa Falar subia o morro em homenagem à Mangueira. No dia seguinte, os mangueirenses retribuíam a visita. Mais tarde, Cartola até faria um samba para saudar o Estácio: "Muito velho, pobre velho,/ vem subindo a ladeira/ com uma bengala na mão. / É o Estácio, velho Estácio./ Vem visitar a Mangueira/ e trazer recordação. / Professor, chegaste a tempo/ pra dizer neste momento/ como devemos vencer".

"Todo o tempo que eu viver só me fascina você, Mangueira" (Cartola)

Então, seguindo o exemplo do Estácio, Mangueira constituiu uma escola de samba. Cartola escolheu o nome - "Estação Primeira de Mangueira" — e sugeriu as cores, o verde-rosa que se tornaria famoso.

Tudo pronto, elegeu-se a diretoria: Saturnino Gonçalves, presidente, ajudado por Marcelino José Claudino, Francisco Ribeiro, Pedro Caymmi, Carlos Cachaça e Cartola. Prepararam-se os instrumentistas (tamborim, pandeiro, violão e cavaquinho; surdo, reco-reco e cuíca só seriam introduzidos depois, pela Deixa Falar). Escolheu-se o samba (Chega de demanda, de Cartola). O resto foi só descer para a cidade: 

— O primeiro concurso de escolas de samba — lembra Cartola — foi promovido em 1929 ou 1930, na Praça Onze, pelo José Spinelli. Ele comprou umas taças numa loja da Praça Onze mesmo, sentou-se como único juiz numa cadeira e assistiu ao desfile das poucas escolas que havia. Ganhou a Mangueira.


Mangueira subia e Cartola firmava-se como um dos maiores compositores do morro. Numa Feira de Amostras na Esplanada do Castelo, o jornal "A Pátria" promoveu um concurso de sambas de escola. Cartola ganhou e levou como prêmio uma medalha de ouro (mais tarde deixada numa casa de penhores), dois violões e um cavaquinho. Indagado se voltaria a concorrer no ano seguinte, respondeu com modéstia que não, que Mangueira deveria indicar outro de seus muitos e bons compositores (Carlos Cachaça, Aluísio Dias, Zé-com-Fome — o Zé da Zilda, autor de Aos pés da santa cruz —, Geraldo Pereira, Ataliba Leal). E de fato, no ano seguinte, o prêmio seria conquistado por Carlos Cachaça. 

Com a popularidade adquirida como compositor de escola, logo Cartola receberia propostas que iriam lhe permitir complementar o magro salário de pedreiro. Por volta de 1929, um guarda municipal por nome Clóvis procurou-o no morro para lhe propor a compra de alguns sambas. Clóvis agia como intermediário de Mário Reis, um dos cantores de maior sucesso na época. 

— Comprar samba pra quê? Que que ele vai fazer com um samba? Esse cara é maluco... 

Vamos lá, Cartola, o negócio e bom. Vamos falar com o moço. 

— Eu não vou vender nada. Isso não se vende... Vai dar confusão com a polícia. 

Mas Cartola acabou se deixando convencer e foi falar com Mário Reis, que lhe comprou Que infeliz sorte por 300 mil-réis (a princípio Cartola pensara em pedir só 50). Em 1930, a música apareceria em selo Odeon, interpretada pela dupla Mário Reis-Francisco Alves. Olhando seu nome na etiqueta (Mário Reis comprara apenas os rendimentos autorais da gravação, e não a autoria do samba), Cartola começou a achar muito bom esse negócio de vender sambas. E repetiu a dose com Chico Alves, para quem vendeu inúmeras composições, como Tenho um novo amor e Divina dama.


Divina dama, a composição predileta de Cartola, foi escrita numa quarta-feira de cinzas de muita dor-de-cotovelo. Inspirava-se numa cabrocha de Ramos: "Tudo acabado,/ e o baile encerrado,/ atordoado fiquei./ Eu dancei com você,/ divina dama,/ com o coração queimado / em chama".

A mulata estava noiva de outro — daí a dor-de-cotovelo e o samba (que lhe valeu 300$000).

Com o dinheiro ganho na venda das composições, Cartola esforçava-se por fazer jus ao apelido: andava sempre de palheta nova, chegando a comprar (por 7$000 cada) várias num mesmo mês. Outra bossa da elegância da época eram os chinelos Charlot, de lona, fechados na frente e com a forma da cara de um gato — e Cartola era proprietário de dois pares, um verde e um vermelho xadrez.

O dinheiro ganho com as músicas permitia essas pequenas excentricidades e reforçava o orçamento, mas era muito eventual. E, claro, o salário de pedreiro não podia sustentar o samba e a boemia. Cartola, como outros compositores, vivia em dificuldades, sempre precisando de algum.

Um dia, meio apertado, resolveu fazer um vale com Chico Alves, e foi procurar o cantor num botequim (nas proximidades de onde, hoje, está o Maracanã). Chico ainda não chegara, mas estava Noel Rosa. Cerveja vai, conversa vem, e:

NOEL: Você viu o Chico por aí?
CARTOLA: Não, por quê?
NOEL: Vou meter um vale nele.
CARTOLA: Eu também estou esperando o Chico pra arrumar algum.
NOEL: Ih! Ele vai botar a boca no trombone.

E botou mesmo. Pão-duro famoso, Chico Viola deu escândalo, só concordando em se separar de algum dinheiro depois que, premidos pela necessidade, os compositores, ali mesmo no boteco, criaram duas músicas. Noel fez Estamos esperando, Cartola, Diz qual foi o mal que te fiz. (Outra versão diz que os dois fizeram apenas este samba, tendo Cartola se encarregado da primeira parte.)

Nelson Cavaquinho

Além da venda dos sambas (muitos dos quais acabaram esquecidos pelo autor), Cartola andou tentando a carreira de intérprete. Formou um trio vocal e instrumental com Wilson Batista e Oliveira da Cuíca (o primeiro cuiqueiro do rádio) — mas o conjunto, que deveria exibir-se em todo o Brasil, só conseguiu ir até Barra do Piraí, antes de se dissolver. Com Paulo da Portela, Cartola lançou um programa de rádio chamado A voz do morro — que foi ouvido apenas por três meses. Mas Cartola insistiu, apresentando-se como cantor-compositor nos programas das rádios Educadora, Philips e Cruzeiro do Sul, além de formar no coro da gravadora Columbia, onde acompanhava os cartazes Aracy Cortes, Moreira da Silva, Ratinho.

Em 1940, tornou-se internacional, graças ao maestro Villa-Lobos, que foi buscá-lo (como também a Pixinguinha e outros) para gravar com a Orquestra Sinfônica da Juventude Americana, que Leopold Stokowski trouxera ao Brasil. Na gravação — feita a bordo do navio Uruguai, e com a presença de Donga, Zé da Zilda, João da Baiana, Jararaca e outros —, Cartola apresentou Quem me vê sorrindo, que fizera em parceria com Carlos Cachaça. As gravações, apresentadas em dois álbuns, foram lançadas nos Estados Unidos pela Columbia, e valeram a Cartola o lucro bruto de 4$000 (numa época em que, mesmo explorado, ele vendia uma composição por 300/500$000).



Villa-Lobos ("uma espécie de padrinho meu") ainda apareceria outras vezes na carreira de Cartola, levando-o a um festival de música no campo do Fluminense, e a participar de filmagens feitas na Quinta da Boa Vista. 

Tudo isso, no entanto, ocorria com vários anos de intervalo. Já na década de 30, a carreira artística revelara-se pouco rentável, impraticável mesmo. O pouco que Cartola recebia de direitos autorais devia-se a algumas gravações, como Na floresta (Sílvio Caldas, 1932) e Não faz, amor (Francisco Alves, 1932). 

A despeito de todas as tentativas, Cartola continuava a ser um compositor do morro, conhecido apenas nas escolas de samba. O morro cantava suas músicas, mas isso não dava dinheiro. Para sobreviver e cuidar da companheira, continuava mais seguro o ofício de pedreiro. E assim ia vivendo o Cartola: de dia, pôr um tijolo; de noite, compor ou cantar um samba. Até que, de repente, em 1948, sem dizer nada a ninguém, desapareceu da Mangueira.


A história só recomeçaria numa incerta madrugada dos últimos anos 50. Naquele fim de noite, Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, procurava um bar aberto em Ipanema. Encontrou o botequim, pediu seu café e começou a tomá-lo quando entrou um lavador de carros. Macacão encharcado, inseguro nas pernas, o homem pediu qualquer coisa para beber. Sérgio tomou cuidado para que o sujeito não esbarrasse nele, não entornasse café em sua roupa. Virou-se e, meio por acaso, reconheceu o paupérrimo lavador: Cartola

Aos poucos a estória foi sendo conhecida. Um ataque de meningite, três dias praticamente morto. Sua companheira, que não era de pedir favores, levou-o para Nilópolis, onde a recuperação levou mais de um ano, durante o qual o compositor só conseguia andar de muletas. 

Voltou curado, mas não completamente. Pernas pouco firmes e tonturas frequentes impediam que Cartola trabalhasse como pedreiro. Tornara-se guardador e lavador de carros em Ipanema, das dez da noite às seis da manhã.


Continuava a compor, sim. Por exemplo, uma canção de agradecimento ("gravada pelo Jamelão por volta de 1952") chamada Grande Deus: "Deus, grande Deus,/ meu destino, bem sei / foi traçado pelos dedos teus./ Grande Deus,/ aqui de joelhos,/ voltei para te implorar:/ perdoai-me./ Sei que errei um dia,/ ô, ô, perdoai-me,/ pelo nome de Maria,/ e nunca mais direi/ o que não devia". (Hoje ele conta com um sorriso que essa canção, além de tudo, é o seu "abre-alas no Céu".) 

Segundo Cartola, "aquilo foi um espanto pro Stanislaw. Aí ele disse que ia me tirar daquele serviço. E tirou". 

Em 1960, ele tinha emprego fixo como contínuo numa repartição pública. E as coisas começaram a melhorar.


Em Mangueira, para onde voltara depois de restabelecido, havia conhecido Zica (Euzébia Silva do Nascimento), notável passista e cozinheira de mão cheia. Cartola perdera sua primeira mulher e...

— Um dia passei na casa do Carlos Cachaça, e conheci a cunhada dele, mocinha mas já viúva. Essa mesma Zica que está aí. A gente combinou logo, desde o início, e num instante estava vivendo junto.

A partir de 1961, os amigos foram chegando, e na casa de Cartola e Zica havia samba todas as sextas-feiras. Apareciam Zé Keti, Élton Medeiros, Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro e outros sambistas. E sempre alguém comentava:

— Com esses quitutes que a senhora faz, dona Zica, devia abrir um restaurante.


Era uma ideia. No ano seguinte, ao invés de receber os amigos em casa, na rua dos Andradas, Cartola convidava-os para o Zicartola, recém-inaugurado restaurante na Rua da Carioca. Entre os frequentadores, e sempre participando dos shows de improviso, Tom Jobim, Zé Kéti, Nélson Cavaquinho, Ismael Silva, Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, João do Vale, Paulinho da Viola, Dorival Caymmi, Silvinha Teles.

Bons tempos, em que Cartola viu suas composições O sol nascerá e Sim gravadas, respectivamente, por Nara Leão e Elizeth Cardoso. Com o dinheirinho faturado, realizou um velho sonho: fez uma operação plástica no nariz, sempre inchado e em forma de couve-flor.

Paralelamente, a crítica descobria, para desespero dos paternalistas, que Cartola não era exatamente um primitivista. O compositor se declarava, numa entrevista, leitor atento de bons poetas brasileiros e portugueses.

"Eu dancei com você divina dama com o coração queimando em chama.
Em 1964, casou-se com Zica (depois de doze anos de companheirismo), em cerimônia que marcou época, no Rio.

Depois, tão depressa quanto viera o sucesso, veio o declínio. O Zicartola saía da moda, e no fim, Nélson Cavaquinho cantava para mesas vazias. Fechado o restaurante, Cartola e Zica viram outra vez seu orçamento limitado ao dinheiro do salário de contínuo e dos direitos autorais de Cartola. A situação ficou tão ruim que tiveram de viver por uns tempos na rua Bento Ribeiro, casa do pai de Cartola.

Uma das causas do pouco dinheiro é que Cartola, embora não tivesse filhos, tinha sempre crianças a cuidar: Ruth (filha da primeira esposa), depois Regina (filha do casamento anterior de Zica), depois Ronaldo (que Zica adotara), Creusa (“filha do meu amigo Amadeu”) e finalmente os dois filhos de Regina.


Mas em 1970, “por tudo que Angenor de Oliveira representa para nossa música popular”, o Estado da Guanabara doou-lhe um terreninho em Mangueira. Cartola, auxiliado por um ajudante, construiu pessoalmente a casinha, de 8 m por 3,5 m. Afinal, um lugar de seu. Aos 65 anos — mais de cinquenta de música — foi chamado a gravar um LP. Três anos depois, gravaria o segundo. Trocou a pinga (“acho que já tomei a minha conta”) pela cerveja, e a Mangueira pelo violão doméstico:

— Não vou à avenida desfilar, mas não deixo de sentir aquela emoção. Vibro quando o povo saúda a Mangueira. Só que a zoada é muito grande. Foi um tal de colocar surdos, taróis e cuícas que não existe tímpano que aguente. Antigamente era muito mais bonito, o tamborim reinava na bateria. Nos primeiros tempos de Mangueira, a escola era conhecida de longe pelo ruído do arrastar das sandálias de suas pastoras do samba. Hoje, com o excesso de barulho, isso não é mais possível.


Nostálgico? Talvez, mas não passadista. O compositor que escreveu “a sorrir eu pretendo levar a vida, / pois chorando eu vi a mocidade perdida” (O sol nascerá, parceria com Élton Medeiros) fez essa declaração numa época em que se encontrava em plena atividade.

Depois do show Cartola convida (1970), no edifício da extinta União Nacional dos Estudantes, no Rio, depois dos dois long-playings, e depois de ter reaberto em São Paulo o Zicartola (1974), a vida e a carreira do compositor sexagenário estavam no apogeu, como em sua canção: “Bate outra vez, / com esperança, o meu coração, / pois já vai terminando o verão, enfim / volto ao jardim...” (As rosas não falam).

Da escola de Arturzinho e Antonico, na antiga Mangueira, Cartola tornou-se uma tendência da música popular, que, via serões musicais, passou a Paulinho da Viola, Élton Medeiros, Nélson Sargento e outros.

— Meu samba tem um ritmo sincopado, um pouco lento. Não sei explicar exatamente por quê, mas a minha linha melódica é inconfundível. Como também são as de Zé Kéti, Paulinho, Nélson Cavaquinho. Reconheço à primeira vista qualquer música deles.

Dos velhos tempos difíceis sobrou um discutível consolo:

— A minha vida deixou pouco para sentir saudades, mas a verdade é que quanto mais a gente sofre, mais tem inspiração.

No presente [início dos anos 70], o velho pedreiro só pensa em aprimorar seus tijolos. E promete, cheio de humildade:

— Ainda continuo a aprender e acho que daqui para os cem anos, estou fazendo coisa boa. [Cartola morreu no dia 30 de novembro de 1980] 

Orquestra jovem da Mangueira

3 comentários:

Anônimo disse...

Hoje meu dia foi produtivo, feliz e pleno de poesia...
"Cartola, o trovador dp samba" fechou com chave de ouro meu dia...De Cartola só conhecia a música. Conhecer a história me encanta. Meu foco é gente. Obrigada, Ivo, por este presente
Emiliana Casagrande

Angela disse...

Que beleza este artigo, Ivo. Rico! Muito obrigada.

Roger de Sena disse...

Tive a felicidade de acompanhar o editor do blog nesse dia. Uma beleza, tanto o lugar como a história do Centro Cultural Cartola, sem falar na do grande sambista TRICOLOR e fundador da Mangueira!
Além disso, grande Ivo, como bem disse a Angela aí acima, esta publicação está riquíssima, pela qualidade da informação e das lindas fotos.
Abração.