ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

7.6.07

E FOI UM SONHO! UM SIMPLES SONHO!

TEXTO DE SÉRGIO ANTUNES DE FREITAS

O Solar dos Abacaxis, imponente casarão neoclássico erguido em 1843, não distava muito do chalé de Machado (endereço atual: Rua Cosme Velho, 857)

Casarão que foi a sede da fazenda de café onde morou o Visconde de Taíde. Vizinho do chalé de Machado, na sua capelinha, Machado casou-se com Carolina (endereço atual: Rua Cosme Velho, 218)

O livro, Várias Histórias de Machado de Assis, ganhei do meu compadre.

Deitado em rede macia e desbotada, na varanda de uma Brasília de 2005, o livro aberto caiu sobre o meu peito. Adormeci e fui remetido a um sobrado no Bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro de 1890.

Enfiei-me por um corredor e subi uma escada. “A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão era pegajoso”.

“A noite caíra de todo”.

Encontrei Machado sentado em uma cadeira de balanço de palhinha e madeira envernizada.

Olhou para o lado, ” ... tlic do lampião de gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira.”

Ainda não havia notado a minha presença. “... foi pegar a jarra em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até a porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem planos. Sentou-se outra vez... A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.”

Foi quando me anunciei, para sua surpresa discreta. Olhei em volta, procurando uma pena e tinteiro que me propiciasse um autógrafo, mas não era o seu escritório. Disfarçadamente, fiz algumas perguntas evasivas sobre a sua vida, o momento político, a desejada evolução industrial e o espírito bom do brasileiro simples.

“E referiu muita cousa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos...”


Ao lado de onde Machado morou de 1883 a 1908, ergue-se agora o Edifício Machado de Assis (endereço atual: Rua Cosme Velho, 174)

Do conjunto de chalés da Condessa de São Mamede administrados pelo irmão de Carolina, um deles ocupado por Machado, sobrevive este, verdadeira relíquia (ao que me consta, não tombada) à Rua Cosme Velho, 120

Aproveitei para puxar o assunto da literatura brasileira. Ele já desconfiava que eu não era daquele tempo, pelas vestes, pelas palavras, pelo olhar, e fez questão de responder com tal desconfiança. Também percebeu que havia interesses relativos ao seu ofício. Cedeu ao aconselhamento, já que eu deveria parecer um iniciante.

“O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

Rodopiei em volta de seu comportamento esquisito, pensando que poderia advir algum ataque epilético, caso não suportasse a situação transcendental e absurda. Preocupei-me em tirar de perto de seus braços uma lamparina e um cortador de páginas, para que não se ferisse, caso estrebuchasse. O ambiente não me era estranho, já que conheci lugares semelhantes em museus, filmes de época, páginas de livros.

Ouvi o barulho de um tílburi, de cascos de cavalos, o grito seco do cocheiro, estimulando a velocidade do animal. Senti a brisa e o cheiro de um mar distante. Imaginei, tão próximas de mim, praias cariocas nativas, sem violência, sem poluição, paraísos com marcas noturnas de pés de índios, de negros e de mamelucos.

Olhei para o escritor, que estudava cada movimento de meu corpo e perguntou, nervoso, autoritário, à queima-roupa: - O que veio fazer aqui?

Respondi-lhe, com sinceridade: - Nada, além de produzir um texto que vincule tempos passados em dois séculos, com outro no meio. Que mostre a possibilidade de idéias serem mantidas vivas ao longo de tempos maiores que vidas.

Também para demonstrar que seu trabalho é admirado lá pelo terceiro milênio, algo que certamente nunca ou pouco lhe passou pela cachola.

O escuro, ajeitando os seus óculos, olhou para os meus olhos, sorriu de modo forçado, apontou a sua bengala em minha direção, como se fosse uma arma, e ameaçou: - “Malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco,” vá se aproveitar da literatura de sua mãe!


No seu trajeto diário, de bonde puxado por burros, para o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, onde trabalhava (não dá pra viver de literatura!), Machado passava pelas Casas Casadas, seis casas residenciais geminadas em estilo neoclássico com influência eclética, construídas em 1874 (endereço atual: Rua das Laranjeiras, esquina com Rua Leite Leal)

Se não estivesse absorto demais nas “suas próprias reflexões, ruminando idéias, pensando em temas de romances ou de contos” (R. Magalhães Júnior, Vida e obra de Machado de Assis, vol. 3, p. 64), Machado via também este casarão de 1878, que abrigou a primeira sede do Instituto Pasteur da América do Sul e hoje abriga o CCAA (endereço atual: Rua das Laranjeiras, 308)

Pouco mais à frente, a chácara do conde Modesto Leal, “um dos mais belos casarões do bairro e um exemplar raro do século XIX” (endereço atual: Rua das Laranjeiras, 304)

Quase chegando na Rua Guanabara, atual Pinheiro Machado (onde ficava o palácio da Princesa Isabel e seu marido, atual Palácio Guanabara), Machado contemplava o Instituto Nacional de Educação de Surdos, fundado em 1857 por determinação de D. Pedro II (endereço atual: Rua das Laranjeiras, 232 - se você passa todos os dias por Laranjeiras e nunca notou estes tesouros arquitetônicos, está precisando ler um pouco mais de Machado!!!)

Fotos tiradas no Cosme Velho e Laranjeiras pelo editor do blog. Várias informações das legendas das fotos foram obtidas no guia Cosme Velho & Laranjeiras, da coleção Bairros do Rio, editada pela Casa da Palavra. Texto gentilmente enviado por Sérgio Antunes de Freitas.

10 comentários:

Osmar disse...

Ivo, show de bola este seu documentário. Moro na Glória, pertinho, vou lá conhecer e clicar as Casas Casadas, que arquitetura!!
Valeu!!

Alexandre Core disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alexandre Core disse...

Ivo,

Novamente um excelente registro...belas fotos e um texto muito interessante. É bem possível que Machado realmente não acreditasse na informação do visitante. Só não sei se seria capaz de mandá-lo embora daquele jeito.

De qualquer forma, é díficil não lamentar que um país que viu nascer um Machado de Assis e tantos outros maravilhosos, contente-se com essa entresafra de escritores e suas obras pensadas para uma maioria de leitores medianos que só lê best sellers.

Poemas de Sótão e Porão II disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Poemas de Sótão e Porão II disse...

Excelente, Ivo.
Do êxtase às lágrimas!
Voltei no tempo, revisitei o meu querido Rio de Janeiro e, para além do óbvio, dei de rever o Mestre Machado de Assis, nosso escritor maior. Beijei-o terna de delicadamente... e despedi-me
como quem não quer partir de volta para a terra dos fados. Ah... saudade!
Bravo, bravíssimo!
Kátia Drummond.
Sintra, Portugal.

Anônimo disse...

Hi Ivo,

Que coisa linda e a historia documentada, curtida, fotografada!
E que texto belo do Sergio Freitas, uma viagem mesmo!
E as casas casadas se parecem com as daqui de influencia europeia.
Congratulations!
Beijinhos com carinho

Toronto - Ca

Anônimo disse...

Prezado Ivo!
Parabéns!Belas fotos e textos!
E só acho que o nosso admirável Machado de Assis,jamais o mandaria embora daquele jeito...
Abraços!
Siomara

Felipe Nunes disse...

Nasci e me criei próximo a estas maravilhas e hoje moro em Brasilia. Estava com saudades do local que nasci e vivi até os meus 25 anos. Obrigado por estas fostos.

AJS disse...
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AJS disse...

Muito bom conhecer a história desse clássico bairro do Rio. Parabéns! :)