ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

16.4.06

BAIRRO PEIXOTO

OÁSIS EM COPACABANA


O Bairro Peixoto (que, apesar do nome, não constitui um bairro independente) é um pequeno oásis de tranqüilidade em plena Copacabana, delimitado pelas ruas Santa Clara, Figueiredo de Magalhães e Tonelero. Lá predominam prédios antigos, a maioria em estilo neocolonial e eclético. O nome vem de Paulo Felisberto Peixoto da Fonseca, proprietário da chácara que deu origem ao "bairro". No texto a seguir, intitulado "Seu Augusto e a praça do Bairro Peixoto", especial para este blog, a escritora Esther R. Largman, autora de Jovens Polacas, Tio Kuba nos Trópicos e Jan e Nassau, dá uma idéia do clima do Bairro Peixoto, onde reside.


Como sempre, eu e seu Augusto seguimos no hábito de dar um passeio pela manhã, desde que o doutor Jairo, seu médico, indicou, para melhorar as articulações, a circulação que não andava muito regular e, brincando arrematava, é bom para o humor e a cabeça. Embora eu mesmo não me inscreva nesse receituário. Faço-lhe companhia com todo o prazer. Andamos devagar, que ele já tem idade e dificuldades, às quais fico atento. Desde que nos mudamos, tudo ficou bem mais ameno para mim. O bairro onde agora habitamos é tranqüilo, permite essa andada matutina. Assim respiramos um ar mais fresco, saímos daquele apartamento apertado e quente. À mesma hora, todas as manhãs, salvo quando chove. Mesmo com tempo nublado, caminhamos.



Normalmente damos umas duas ou três voltas pela praça, muito simpática, sombreada por árvores centenárias e frondosas. Quando as acácias florescem e ficam amarelinhas, o ar veste-se de perfume. Ainda que muitos bancos estejam lá plantados, não paramos, procurando não interromper a caminhada. Vejo diversos deles ocupados por senhoras idosas que, serenas, observam as crianças vigiadas a brincar na areia, deixando-se escoar no tempo. Muitos cães também chegam para tomar seu arzinho e fazer suas necessidades; por isso, outro dia, em entrevista a uma rádio local, um produtor e ator de TV já aposentado, indignado e espirituoso, apelidou certo trecho da praça de "cagódromo". Tal irritação surgiu depois que, num certo dia, mergulhou sua nova sandália em algo mole, malcheiroso e preferiu ali deixá-la, sabendo que nem adiantava limpar. Para espanto de alguns que lá circulavam, como um saci-pererê, foi pulando numa perna só, atravessando a rua e a passagem que une a praça à rua Santa Clara. Ao chegar — meio descalço — ao seu prédio, o porteiro deixou cair o queixo alguns centímetros, intrigado.


Depois das voltas começamos a subir e descer a rua Maestro e a Décio, ruas que se originam em cada canto da praça. Na verdade as ruas têm nomes mais longos — Maestro Francisco Braga e Décio Vilares — mas o povo tem preguiça de nomeá-las no todo. São pequenas, habitadas por construções de poucos andares, ao contrário das outras ruas que conheço dessa cidade. Alguns telhados graciosos, varandas pequenas, as cores da fachada, o estilo antigo, um conjunto peculiar, conferindo-lhes um ar europeu. Calçadas são intercaladas por árvores, também de idade avançada, oferecendo cobertura generosa. Os idosos têm certo rigor no horário e nos hábitos. À certa hora, quando passamos por certa portaria protegida por um muro baixo, vemos um belo gato cinza peludo, miando e arranhando a porta diariamente, sempre que passamos. Como continuamos, não sei se lhe dão guarida. Varrem a calçada os porteiros, ou conversam com colegas. Diversos cachorros sobem essas ruas, o olhar manso, faminto de atenção, língua de fora. Alguns donos são mal-educados, não limpam nada, emporcalhando a simpatia do bairro. Um ou outro leva um pedaço de jornal ou um saco. As babás dos animais, conversam animadamente com amigas e nem sempre cumprem o dever patriótico da limpeza.


Ao descer a segunda rua, chegamos de novo à pracinha e passamos na banca de jornal do Toni que sempre cumprimenta o sr. Manoel, apesar dele não lhe adquirir jornal, nem revista. Só quando resolvem anexar a alguma publicação um disco, então ele compra, mais talvez para agradar ao jornaleiro, que o apartamento está bem servido em tudo quanto seja disco, sobretudo os de música clássica, ele e também eu apreciamos.
— E então, está acostumando com o bairro? — Toni é um rapaz de origem italiana, sério e delicado.
— Sim, estou, as pessoas são muito simpáticas, mais calmas do que as do outro logradouro, todos apressados. Obrigado, Toni.
Depois de outro contorno, nos dirigimos ao apartamento, sempre passando por uma árvore, em cujas grossas raízes senta um rapaz negro, alto, belo nos traços, contudo maltrapilho e malcheiroso. Diariamente escutamos seu pedido:
— Um trocadinho, tio, pro remédio, que sou doente.
Certa vez, senhor Augusto perguntou-lhe porque não ia para um hospital se tratar?
— Já tive internado muitas veis mas eles me manda embora…



Durante o dia ele não assusta, mas bem que à noite, sua altura, seu aspecto e cheiro, podem amedrontar qualquer um. Sinto compaixão desse rapaz belo, atrás da sujeira que o cobre.
Estou lhes contando isso porque gosto muito das gentes dessas ruas e da praça, nelas passeio com prazer e, claro, também aproveito para esticar minhas pernas. Por tanto gostar, fiquei revoltado com o que ocorreu outro dia. Ao encontrar dois amigos, que interromperam senhor Augusto pra conversa fiada, foi que soubemos. Esses dois amigos são estrangeiros e moram há muito no bairro e, como estão idosos, já não trabalham.
Todas as manhãs os encontramos na mesma posição. Um está de pé e o outro também de pé, apóia uma perna no hidrante. Se fosse pintor gravaria essa cena. Ambos vestidos com calça social e camisa, como nos tempos em que eram ativos, para matar o tempo conversam sobre tudo o que ocorre. Assim nos informaram:
— Senhor Augusto, sabe das novidades?
— Quem sou eu para sabê-las. Vivo tão isolado…Contem, quais são?
— Primeiro que incendiaram a banca do pobre Toni!
— Como?! Como é possível? E por quê?
—Ninguém sabe ainda, foi de madrugada, ninguém viu, ninguém apareceu pra contar. O coitado está desolado, não sabe o que fazer da vida. Um senhor prejuízo!
— Sabe, aquele rapaz escurinho? Todo sujo, vivia pedindo esmola?
— Sim, às vezes dou-lhe um trocado.
— Pois foi encontrado morto pela manhã. Não se sabe se houve briga entre mendigos, se foi de doença, sumiram com o corpo logo-logo. Quem vai perguntar, não é?



O senhor Augusto continuou a andar triste, passos compassados. Acompanhei-o até a banca toda queimada, metal retorcido, apenas. Um cheiro ainda recendia.
— Pois é, seu Augusto, quem poderia fazer essa maldade? Dizem que foram filhinhos de papai, outros acham que foram os mendigos da praça. A polícia veio fazer a perícia, mas sabe como é, pobre não pode ficar esperando o resultado pro dia de São Nunca.
— O que pensa fazer, rapaz?
— Nem sei ainda, mas talvez peça dinheiro emprestado pra saldar minhas dívidas e dar entrada em outra banca, maior e mais forte, aquela à prova de fogo.
O senhor Augusto ficou ouvindo e, de repente, teve uma idéia:
— Toni, vê se arruma uma folha de papel almaço.
Toni conseguiu o papel; então o sr. Augusto ditou:
— Escreva aí: Abaixo-assinado para auxiliar na compra de nova banca. Serei o primeiro a assinar. Os fregueses vão lhe ajudar, tenho certeza.
— Muito obrigado, muito obrigado mesmo. O senhor é gente fina — o jornaleiro comovido, olhos marejados, olhava ora para o chão, ora para as árvores, apertava os lábios, as mãos sem direção.
— Tem mais uma coisa: vou lhe doar alguns livros meus para você vender e ficar com o que apurar.
— O senhor é escritor?! — espantou-se Toni.
— Às vezes, sorriu o outro



Semana seguinte, quando passamos pelas ruínas da banca, após oferecer um abraço e um afago, Toni brandiu o papel:
— Seu Augusto, imagine que o dinheiro do abaixo-assinado de uma semana, já deu pra pagar quase todas minhas dívidas. Agora só falta juntar pra comprar a banca. E, olhe, já vendi dois dos seus livros. Quem sabe, né?
Olhar, o senhor Augusto não podia, mas sorriu, como sempre.
Cada vez mais admiro meu companheiro.
Esqueci de lhes contar: meu nome é Jak, sou um cão labrador especialmente treinado para acompanhar cegos.


Fotos tiradas pelo editor do blog no Bairro Peixoto: 1) Chafariz da Pça. Edmundo Bitencourt; 2) Feira-livre nas quartas-feiras; 3) Vista de uma varanda (ao fundo os prédios de Copacabana); 4-5) Rua Décio Vilares; 6-8) Rua Maestro Francisco Braga 9) Cão decorativo numa portaria. Informações sobre o Bairro Peixoto extraídas de Bairros do Rio: Leme e Copacabana da Editora Fraiha.

12 comentários:

Anônimo disse...

Excelente e muito ilustrativo este post, Ivo. Por incrível que pareça, pouca gente conhece o bairro Peixoto. Você está ensinando o Rio aos cariocas.

Parabéns, amigo.

Nel Meirelles
http://www.falapoetica.blogger.com.br

Anônimo disse...

Oi caro amigo escritor.

Nessa nossa vida de "sobrevivência", onde o tempo é dinheiro, falta o famoso tempo para conhecer toda essa beleza que você tanto aprecia e divulga. Prometo que um dia "tentarei" conhecer o bucólico bairro Peixoto, encantador por sinal.
Em tempo , espero que seu domingo de Páscoa tenha sido harmonioso com sua família.
Ivo, que tal você postar e assim divulgar alguns de seus contos do "prosas e versos"? Tenho certeza que muitos não conhecem e, certamente, ficarão encantados.
Felicidades!!!

Anônimo disse...

O "cão decorativo" é o guardião de um mínúsculo cemitério de cachorro, como me disse uma amiga, no tempo em que ela vivia nesse prédio. (Enviado por e-mail)

Ivo Korytowski disse...

Querida fã número um, obrigado pelo comentário tão gentil. Os meus melhores contos estão reunidos no meu livro Édipo, a cujo lançamento você compareceu. Da tiragem de 500, falta vender 100 para que ele "desencalhe". O Édipo está à venda em qualquer livraria virtual, por exemplo, no Submarino, ou mesmo no site das Lojas Americanas com bom desconto. Mas quem preferir comprar um exemplar com dedicatória e autógrafo pode solicitar direto pra mim (escritorcarioca@ig.com.br). Cobro bem baratinho, só o preço de custo que tenho de pagar à editora. Um dos textos do livro, "Grandes e Pequenas Maravilhas", está neste blog. E obrigado por seu minha fã número um e por estar sempre me dando a maior força!

Ivo Korytowski disse...

Ao Nel Meirelles - que já colaborou com este blog na postagem "Poemas de Amor ao Rio" - agradeço as visitas regulares e comentários simpáticos. Aliás, sou fã da obra e do blog dele (www.falapoetica.blogger.com). Visitem que vocês vão gostar!

Unknown disse...

Mais um bairro que estou conhecendo aí.

Tenha um bom dia!

Abçs,

Vinicius Factum
Blog de um Cidadão

Anônimo disse...

A banca incendiada que a crônica menciona foi a do Chico na frente da Boca do Lobo, já tem uns 10 anos do ocorrido.

Já o apelido cagódromo surgiu da boca do falecido Moacyr Deriquem, um cara que era defensor ferrenho do bairro

O rapaz doente, pelo visto continua vivo, hoje fazendo ponto na Anita Garibaldi, e não é tão grande, deve ter encolhido pela tuberculose...que é a sua doença.

Já o mendigo que foi morto mais recentemente na praça, foi degolado perto do chafariz, já há um bom tempo, o pobre não teve nem tempo para reagir, morreu sentado no banco em meio a um rio de sangue e só foi descoberto quando amanheceu o dia.

(Postado na comunidade Bairro Peixoto do Orkut)

Anônimo disse...

Ivo:
Doces as imagens do remansoso Peixoto.
Uma coisa que precisa ser retomada é a observação dos subúrbios da Central e da Leopoldina (assim marcados pelas linhas dos saudosos trens...). Ou o que resta deles. A rua São Francisco Xavier que, na seqüência com a 24 de maio, nos leva para o Meier e etc teve belíssimos casarões dos anos finais do XIX e do início do XX. Hoje, seu trecho logo após o Maracanã, faz chorar!
Mesmo assim, se pegarmos um ônibus para Marechal Hermes (p. ex), veremos coisas surpreendentes. Ao longo da rua Clarimundo de Melo (acho eu) vemos casas antigas, bem ou mal conservadas ,mas com restos de dignidade (quando escapam dos grafiteiros). Famílias nas portas conversando e garotos brincando nas calçadas. É uma visão quase espectral, estranha aos nossos dias. Mas eu as vi, há pouco tempo...
Marechal Hermes, p ex, tem a partir da notável estação de trem, um eixo definido por construções interessantíssimas. Vale conferir.
Às vezes uma revista dessas faz o registro. Mas na maior parte das vezes são áreas condenadas ao esquecimento e à ruína.
Como de resto, o que restou...
Abraços do
HB

(enviado por e-mail)

Ivo Korytowski disse...

Pois é, Helio, aos pouquinhos pretendo sair do eixo Zona Sul-Centro e incursionar por outras áreas: já estão na minha agenda Vila Isabel e São Cristóvão. Essa sua dica é valiosíssima, você não quer vir comigo uma tarde para fazermos essa "reportagem"?

Anônimo disse...

O Bairro Peixoto está intimamente ligado a minha infância.
Eu tinha um fascínio especial pela praça com seus bambus.
Tenho um tio-avô com 97 anos de idade, que até hoje mora lá, na rua Décio Villares, num prédio antigo de 2 andares, muito aconchegante. (enviado por e-mail)

Anônimo disse...

obrigada pelo excelente blog do bairro pexoto. matei as saudades deste lugar especial no rio de janeiro. sou brasileira mas moro no exterior ha 28 anos. VIVA!!!!

Anônimo disse...

Tenho saudades do bairro Peixoto pois passavamos varias temporadas la, no apartamento de ferias de meus avós na decada de 80. Ja tem mais de 20 anos que não voltei ao bairro mas fico feliz em ouvir que ele continua gostoso como as minhas lembranças daquela época. Hoje moro na Suiça.