Quarta-feira. Cinzas. Os foliões mais fanáticos espicham a madrugada para se recolher, curtindo os derradeiros momentos da pândega em agonia. Caso não consigam álibis para reiniciar somente amanhã a soi disant vida séria, irão de tarde trabalhar, se arrastando nas pernas cansadas. ressacas ambulantes, enxaquecas indomáveis. Senhores graves, infensos à esbórnia generalizada, suspiram aliviados, simplesmente por não apreciarem ou por a condenarem do ponto de vista da moral e dos bons costumes. Em alguns bairros houve o hábito, perdido ao que eu saiba, de, na quarta-feira de cinzas, sair bloco — a exemplo do Chave de Ouro, do Engenho de Dentro — de adeus nostálgico ao Carnaval que estava terminando, simultaneamente propiciatório do próximo. Não eram grande coisa, limitando-se a alguns giros meio melancólicos pela vizinhança, em clima que Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, na década de 6o, imortalizaram na Marcha da quarta-feira de cinzas:
Saudades e cinzas foi o que restou
Pelas ruas o que se vê
E uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor
E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade.
Entre esses extremos, os demais habitantes da cidade vão se acomodando, cada qual a seu jeito, reinserindo-se na devolução à normalidade. Como acidente de percurso registre-se, na quarta-feira de cinzas de 1922, a eleição de Artur Bernardes para Presidente da República. Turistas ainda são raros. Até para o ano, amigos! Ou, irmãos de credo e salseiro, até breve, quem sabe. É que o Carnaval, desde séculos e séculos, desde que comemorado a primeira vez (quando?...), sob a bênção e a inspiração de Dioniso, que Zeus o tenha!, termina a cada momento em que a fadiga física ou o tédio de viver o sufoca no coração de um carnavalesco e começa a cada momento em que o coração de outro carnavalesco se incendeia de prazer e riso.
Porque o Carnaval é assim: uma festa extraordinária, rodopiante, de insuperável dinamismo, atingindo todos os segmentos da sensibilidade humana, nenhum lhe escapa, feita de fragmentos de glória, de momentos de esplendor, de instantes de gozo, que duram frações de minutos ou eternidades, como elos de uma corrente mágica, uma corrente permanente, sempiterna, mistério que se deve e se pode viver intensamente, que não se deve e não se pode jamais abranger como um todo, muito menos supor que é possível reduzir a um texto compacto, limitado, enciclopedizado, mistério indecifrável, de tão complexo na dinâmica de sua estrutura, de tão longevo em sua trajetória no tempo. O Carnaval é uma unidade formada da fusão de unidades soltas?... Estará estampado no inconsciente de cada um de nós e de nossas coletividades? Será aquilo que é, como as estrelas, os rios, as tempestades — em concreto, uma força da natureza, que se manifesta através do homem. Desde séculos e séculos. Por séculos e séculos.
(Do volume 1 de Diário da cidade amada - 1922 de Antonio Bulhões. Nesta obra monumental em três volumes — acondicionados num estojo — premiada pela ABL, Antonio Bulhões vale-se do ano de 1922 como "pretexto" para traçar um painel amplo da cidade amada do Rio de Janeiro em seus mil e um aspectos.)
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