Machado de Assis com Joaquim Nabuco aos 67 anos em foto de Augusto de Malta de 1906 |
Possuía uma saúde frágil, sofria de epilepsia e gagueira. Ao longo de sua vida foi vitimado por problemas nervosos, e, entre eles, a depressão, situações que se agravam com o falecimento da mulher Carolina, em 1880, a quem dedica um soneto do qual revela sua dor profunda com a separação definitiva do ente querido. Disfarçava a gagueira, a epilepsia escondeu da mulher antes do casamento, até que foi acometido de uma crise generalizada. Mesmo antes da morte de Carolina, ficou sem parte da visão, ouvia a esposa lendo para ele textos de jornais ou livros.
É possível, como querem alguns biógrafos, que da sua infância no Morro do Livramento Machado de Assis passou a ter os primeiros sentimentos da ambição para ascender no meio social. Soubesse de sua condição de inferioridade em razão da cor e origens humildes, ao perceber como a vida era diferente aos que pertenciam à elite social com seu modo de vestir e acontecer, cercados do bem-estar auferido da existência tranquila. Provavelmente, já percebesse suas inferioridades no ambiente em que as pessoas da classe privilegiada visitavam a chácara pertencente a Dona Maria de Mendonça.
Pelo seu projeto estético com a marca da genialidade, Machado de Assis se constitui em um fenômeno da literatura brasileira. Sua genialidade posta nos contos e romances provém em parte de sua paciência e seriedade para na passagem dos anos armar seu projeto criativo com arte, engenho e senso estético. Opositor dos que acham que a literatura é o sorriso da sociedade, era também da visão dos que improvisam em suas criações literárias, para ele literatura é coisa séria, requer a presença no plano estético sem superficialidade, de forma e fundo. É transfiguração da vida com o uso da palavra mítica, equilíbrio no discurso operado com técnica apurada, exige instrumental crítico que dá condições para saber dos meios utilizados na reinvenção da vida.
Por isso estudou os clássicos portugueses, como Camões, Sá de Miranda, Frei Luís de Sousa, Filinto Almeida, João de Barros, Bernardim Ribeiro, Garrett, Camilo; clássicos gregos e latinos, a Bíblia; Rabelais, Montaigne, Flaubert, Merimée, Sthendal, Gautier, Balzac, Vitor Hugo, Diderot, Maupassant, Voltaire; Poe, Fielding, Lamb; Shakespeare, Swift. De todos eles aprimorou os modelos da expressão, adquiriu a firmeza, simplicidade e economia dos meios na execução do texto. Foi influenciado no humorismo por Cervantes, Swift, Dickens e Sterne. E, na concepção do mundo e do homem, pelos filósofos Xavier de Maistre, Artur Schopenhauer e Pascal. Seus livros preferidos eram a Bíblia, Odisseia, Dom Quixote e Hamlet de Shakespeare. Chegou a estudar grego para ler Homero.
Em Machado de Assis os recursos da ficção são assimilados com paciência, investigação, dedicação. Faz-se a captura dos modelos para que sejam transpostos para a realidade criada com a multiplicação dos meios, absorvidos pela imaginação e sensibilidade tornem-se suficientes no discurso, alcancem o ideal de uma imagem estética da obra. São adquiridos não com pressa, mas através da disciplina da inspiração, do exercício qualificado da transpiração. Assim, com a técnica perfeita assimilada, a expressão suficiente serve para preencher a página em branco, à espera da fatura exemplar a ser exercida pela obra por meio da invenção.
Adquire-se a boa técnica literária com estudo e investigação, engenho e habilidade, sem a facilidade em querer vestir o espírito da língua através de artifícios nas ideias e concepções de mundo, que não convencem, aspirações e frustações de inspiração hesitante, transpiração artificial, não encontrando o texto aquele ponto necessário para vazar o conteúdo com ricos significados. O talento disciplinado deu-lhe com o tempo o lugar merecido como expoente maiúsculo na prosa de ficção do Brasil, sem vinculação aos ditames das gerações antropofágicas necessitadas de opor-se às tradições, nem com o apego às regras convencionadas por escolas no passado.
Esse fenômeno literário que foi Machado de Assis teve reconhecimento em sua época, embora com alguns negadores que viam na sua obra o absenteísmo, adesão à visão mecanicista da vida, determinismo e pessimismo, desprovida de nacionalidade, sem a preocupação social e omissa na cor local. Falhava quando não se insurgia contra o perverso sistema escravocrata, com o negro africano relegado a uma coisa abominável, servindo de mão de obra gratuita aos donos do poder. Os que assim pensavam não percebiam que o senso estético, plasmado nos valores e caracteres da personagem, na atmosfera da alma, prevalece na construção de suas criações. A transição de seu processo criativo já é vista com o romance Iaiá Garcia, enquanto o começo da segunda fase, no qual se dá a plena afirmação com o reconhecimento de sua grandeza, ocorre com o lançamento de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Daí em diante a visibilidade de sua obra com elevado nível rompe as fronteiras locais, seus livros e textos são traduzidos e publicados no exterior.
Como foi que conseguiu esse reconhecimento nacional e além fronteiras vivendo num ambiente cultural atrasado, com os costumes e valores importados do ouropel alheio, circulando no contexto típico de alienação intelectiva, imitativo dos valores alheios, de subordinação aos modelos europeus? Vivia-se no Brasil com o pensamento na Europa. Em sua época, o Rio de Janeiro era uma cidade suja, com ruas estreitas, a do Ouvidor era o ponto principal da cidade onde as senhorinhas desfilavam, frequentavam os bailes, os intelectuais se encontravam nos cafés e confeitarias para nas conversas prazerosas saborear o ócio da vida. A literatura brasileira que era dependente da francesa tornava-se agora um galho da portuguesa.
. A obra de Machado de Assis por ser de pura arte possui uma natureza singular na técnica da construção, transcende o tempo e as escolas, torna-se emblemática em sua concepção de mundo, ultrapassa a época em que foi criada, está sempre aberta para releituras e provocar interesses. Não é documental, datada, restrita aos costumes de uma época. Não lhe interessa a realidade com a sua problemática social e política, importa a verdade que o autor deve ter ao recriar o ambiente exterior e revelar o mundo sob uma perspectiva existencial da humanidade com limitações, incertezas, perdas constantes, conflitos movidos por circunstâncias críticas.
Daí o cuidado de caracterizar os personagens, empregar o humor para melhor solucionar os conflitos, interferir na narrativa, dialogar com o leitor, preocupar-se com a estrutura, a técnica usada com mestria para surpreender nos movimentos conflitantes e cenas no drama. Achar soluções no impasse, sustentar no pessimismo as contradições da humanidade, ao invés da onisciência narrativa o uso do monólogo. Às vezes o dialogo na condução da história, o estilo indireto livre, os instrumentos necessários para substituir a narrativa linear, com a sequência do princípio, meio e fim, o emprego da auscultação da alma, sustentação da atmosfera, introspecção nos pensamentos e sentimentos, sensações impressionistas tiradas nos gestos ambíguos, ao modo de Tchecov. Não queria repetir o equívoco do realismo de Eça de Queiróz em que o espiritual não entra no ponto de vista tirado da realidade como ela é, apresentando-se numa transposição fotográfica para o plano literário, provocando por isso um ritmo repetitivo, que se torna muitas vezes enfadonho, sem prender o receptor no desenvolvimento do quadro.
É visível que o processo criativo de Machado de Assis manifesta-se em duas fases, que são frutos do desenvolvimento consciente de um projeto com o senso estético e consciência. A primeira fase situada entre 1869, data do casamento e estabilização da vida, com a ascensão social firmada, e 1879 quando então vem à tona nesse período as obras que marcam sua visão do mundo ausente das inferioridades, atritos e conflitos: Falenas (1870), Contos Fluminenses (1870), Ressureição (1873), Histórias da Meia-Noite (1873), A Mão e a Luva (1874), Americanas (1875), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), incluindo-se na relação as Crisálidas (1864), poesia.
Nessa fase, o escritor comparece motivado
pelas regras da escola romântica, que dava seus últimos suspiros. O perfil
feminino dos personagens vem traçado com suas ilusões perante a realidade melhor
do que ela é, o escritor ainda não tem a experiência de vida e a observação do
mundo através dos choques com a realidade como ela é, com suas verdades escorridas
no ponto de vista marcado com o pessimismo e o desencanto. O lastro romântico
na escrita convencional subordina os personagens ao relato de cunho
sentimental, não tem a força das que convencem no drama e precisam de autoanálise,
auscultação da alma, reflexões da
experiência da vida e observação aguda do mundo. Através do perfil traçado com sentimentalismo,
os personagens tendem a mostrar a vida com a tônica da superioridade, melhor do
que ela é, o conteúdo impregnado de sentimentos absorvidos de um romantismo decadente.
Machado de Assis afirmara que nessa fase de seu processo estético se encontra
“um eco da mocidade e fé ingênua.”
Na prosa de ficção dessa primeira fase
esboçam-se os meios técnicos e recursos estilísticos depois trabalhados com
precisão. Em alguns momentos encontramos o germe de sua técnica de construção
ficcional na estrutura e nos flagrantes do drama. No entanto, a introspecção, o
desenvolvimento vertical da intriga, o monólogo interior e a auscultação com o
espírito da penetração psicológica estão presentes no seu discurso alinear. A
crítica vê os ares da ficção moderna na
segunda fase, cuja técnica apurada seria desenvolvida com mestria e daria ao
escritor a condição de exímio artista da palavra com foco nas questões
universais que acompanham o homem.
Pode-se dizer que o trabalho de
conscientização técnica na arte de compor o conto e o romance se processa em
Machado de Assis lentamente, aos poucos mostra-se com o rigor duma evolução
longe do artista apegar-se ao produto espontâneo e precoce. Há neste processo
um avanço intermitente e não uma dicotomia como querem alguns críticos e neste
se inscreve o seu lúcido ensaio “Instinto de Nacionalidade”, publicado numa
revista de Nova Iorque, em março 1873, em que se faz presente seu modo de
compreender e sentir as coisas dentro da corrente nativista. Segundo Afrânio
Coutinho (in Machado de Assis/ Obra Completa, pág. 28), este ensaio mostra
que não se deve falar em dicotomia no processo evolutivo do escritor
compreendendo as fases antes e depois de 1880 quando surge o exame de sua
crítica.
“Suas colocações do problema da arte nacional, da influência do povo no estilo, do equilíbrio entre a nacionalidade e a universalidade, ao lado de reflexões sobre os vários aspectos técnicos da arte literária nos diversos gêneros, mostram que estava àquela altura plenamente consciente de seu ofício e aguardava apenas que se lhe amadurecesse a capacidade de realização através dos experimentos que vinha tentando. Como de regra num grande artista, a consciência teórica acordara mais cedo do que a capacidade prática.”
Nos livros da segunda fase estão elencados todos os restantes da carreira de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), pertencentes a um Realismo em que funde sua visão da realidade exterior com o espiritual, no qual o pessimismo é trabalhado com o humorismo. Embora a divisão de sua carreira não seja mais aceita pelos críticos do porte de um Afrânio Coutinho, Eduardo Portella, Barreto Filho, vale ressaltar que já o próprio Machado escrevera numa apresentação de uma reedição de Helena que este e os outros romances da sua fase "romanesca" possuíam um "eco de mocidade e fé ingênua".
Este escritor sem o copioso e com o sintético no estilo preciso é o primeiro que dá ao nosso conto o estofo de entidade literária autônoma. Com relação aos livros desse gênero, Contos Fluminenses (1870) e Histórias da Meia Noite (1873), consecutivamente, são posicionados em sua primeira fase, e Ocidentais (1880), ao lado de Papéis Avulsos (1882), Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1899), e Relíquias de Casa Velha (1906), na segunda. Em Papéis Avulsos encontra-se o antológico “O Alienista”, sobre o qual os críticos até hoje dividem opiniões, se se trata de uma novela, pela extensão mediana e recortes na narrativa que prende com o desenvolvimento da intriga, ou de um conto que expressa os momentos verticais da vida que se esgotam em si mesmos.
Machado de Assis não utilizou na ficção apenas o ponto de vista interior. Situou-se fora da ação com o ponto de vista exterior, ao fazer o seu relato. Resolveu com segurança a entrada e saída do personagem em cena. Por intermédio de uma narração é apresentado nos comentários, sugestões, explicações dos motivos, reações e atitudes, tendendo de modo geral a dar uma feição dramática ao que pretende contar. A revelação dos personagens é feita por meio de seus próprios atos e palavras, gradual ou aos poucos, pelos diálogos e relatos dos outros personagens. Com esses recursos se tornou um grande mestre na técnica de construção de um conto que impressiona e de um belo romance que faz pensar com sua disposição analítica.
Na escrita machadiana, a reconstituição pela memória, impressões sensoriais e emocionais desempenham importante papel na captação dos sentidos. É notório que depois da publicação de Brás Cubas cresce a fama de Machado de Assis. É tido por seus colegas de letras como o maior de todos, daí ter levado seu nome para a presidência da Academia Brasileira de Letras. Estava em voga o Naturalismo, cujos adeptos não poupavam elogios ao romance O Mulato, de Aluísio Azevedo. Não tinham os intelectuais da época preparo suficiente para compreenderem as virtudes modernas desenvolvidas na construção do romance e conto machadiano. Só mais tarde iriam compreender isso, reconhecendo que o escritor absorvera com consciência crítica a tradição literária, reconduzindo-a remodelada a novas direções. Apoiado nos elementos artísticos, estruturais, temáticos, com a presença da morte, que tudo anula, e da vida com a sua indiferença, calcado no pessimismo, apresentava-se como um genial construtor de uma ficção analítica profunda, que a todos surpreendiam com seus efeitos humorísticos.
Para confirmar o seu valor literário firmado com grandeza vieram Dom Casmurro, o seu mais belo romance, Esaú e Jacó, de simbolismo mítico, e Memorial de Aires, em que retoma a técnica da narrativa póstuma, como fez no Brás Cuba. Paralelamente, os livros de contos também vão refletir o tempo e o meio da vida carioca, mostrando que na ficção machadiana havia os caracteres locais no alcance de padrões universais, sem deixar de apontar que a vida é má e madrasta, indiferente ao homem, não merecendo nosso esforço, sonhos e lutas. O humorismo usual tece e acontece para provocar o riso abraçado ao rancor, distúrbios e sofrimentos.
Com o problema
do homem e seu destino terreno, escorrendo a alma na sua melancolia, tristeza,
amargura, ódio, tédio e pessimismo, não é por demais repetir que Machado de
Assis assentou o seu talento literário nos ressentimentos que herdou da vida,
tornando-se dono do ofício concentrado no ceticismo. É sem dúvida o caso explícito
de um fenômeno literário inconfundível. Ultrapassa o seu tempo para permanecer com
sua técnica, seu acento, sua personalidade enquanto exista a melhor literatura,
capaz de produzir obras antológicas, em que é fácil perceber um talento
luminoso na passagem noturna do ser,
dotado de uma rara inteligência.
Referência
COUTINHO,
Afrânio. In Machado de Assis/ Obra Completa, Editora Nova Aguilar, Rio
de Janeiro, 1962.
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A Literatura no Brasil, Editorial Sul Americana, Rio de Janeiro,
1955/1956.
PEREIRA,
Lúcia-Miguel. Machado de Assis/ Pesquisas Psicológicas, In História
da Literatura Brasileira, sob a direção de Álvaro Lins; Prosa de Ficção,
de 1870 a 1920, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
Gomes,
Eugenio, Prata de Casa, Editora A Noite, Rio de Janeiro, s/d.
SODRÉ,
Nélson Werneck. História da Literatura Brasileira, Livraria José Olympio
Editora, Rio, 1960.