Nireu Cavalcanti (arquiteto e historiador – professor da Pós-Graduação da UFF e autor de O Rio de Janeiro Setecentista)
Ao me aproximar do local, pela direção do Largo da Carioca, avistei uma imagem dantesca que me pareceu serem as vítimas penduradas e deixadas como testemunhas da tragédia.
No âmago do sítio, envolvido pelo cenário angustiante, senti a mensagem de vida nas folhas ondulantes da árvore e no majestoso teatro Municipal intacto, com pequenas marcas de estilhaços em algumas vidraças.
Lembrei-me da história de nossa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e do feito de seu padroeiro em defesa de Estácio de Sá e de seus bravos guerreiros, que caíram numa cilada dos inimigos Tamoios. Era final de tarde de um dia de julho de 1566 e, estando em quatro canoas, os nossos fundadores partiram em perseguição a outras tantas inimigas.
De repente, surgiram por detrás do Morro da Viúva inúmeras canoas repletas de guerreiros Tamoios ― os cronistas da época afirmam ser 180. Nesse momento, surgiu à frente da pequena tropa de Estácio de Sá um jovem guerreiro iluminado e fez explodir a pólvora que uma das canoas inimigas carregava, levando-os ao pavor e à fuga.
Por muitos anos, foi comemorado esse feito milagroso chamado “Guerra das Canoas” no dia 20 de janeiro. Na Baía de Guanabara havia desfile de embarcações e espetáculo de guerra teatral entre algumas escolhidas.
Chamou a minha atenção a proximidade do Teatro Municipal aos prédios que ruíram e se tivessem tombado sobre ele, nada restaria da nossa jóia do Patrimônio carioca.
Pensei ― foi São Sebastião que ficou entre esses prédios e salvou-o!
Deixando essas “lendas históricas” com os nossos antepassados, podemos buscar na história carioca as tragédias que abalaram a cidade e as causas possíveis que as provocaram, ou contribuíram para que ocorressem. Para isso, buscarei as crônicas de Vieira Fazenda, escritas em jornais da época (1896-1914), inestimável legado para a história da cidade e da sociedade, em sua obra Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro, editada, em cinco volumes, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Vejamos dois exemplos de como o Poder público e os usuários da cidade, agindo contra o interesse coletivo e com equivocadas opções urbanísticas, geram problemas como esse do desmoronamento de três prédios, no centro da cidade do Rio de Janeiro.
A origem de muitos dos problemas atuais de nossa cidade, decorre da incorreta ocupação do seu território pelos primeiros povoadores, e com anuência dos governantes, e continuada ao longo dos anos seguintes.
O centro atual da cidade foi construído numa zona alagadiça, com várias lagoas perenes, imenso manguezal e cortada por vários rios, riachos e córregos que se formavam com as chuvas torrenciais. Além de ser essa área plana, quase ao nível do mar da Baía de Guanabara e situar-se entre os morros isolados do Castelo (demolido em 1922) que abrigava o núcleo histórico da cidade, de São Bento (desbastado), de Santo Antônio (desbastado quase em sua totalidade), de Nossa Senhora da Conceição (desbastado) e do Senado (demolido) e dos morros contínuos da Serra da Carioca (Santa Tereza, Catumbi, Estácio e Rio Comprido), Santo Cristo, Saúde e Gamboa.
A ocupação dessa área deveria ser entre malha de canais a céu aberto, tipo Amsterdã. No entanto, a opção de nossos antepassados governantes e de sua população foi desbastar ou demolir os morros e aterrar as áreas molhadas. Criaram o território ideal para os alagamentos e desabamentos de encostas a cada chuva torrencial.
Vieira Fazenda cita as chuvas ocorridas em 14 de abril de 1756, que alagaram as ruas, transformando-as em rios navegáveis por canoas, sendo a mais violenta delas a ocorrida nos dias 10 a 17 de fevereiro de 1811. Além do alagamento de toda a cidade, parte do Morro do Castelo desabou sobre as casas do Beco do Cotovelo, que ficava em seu sopé, destruindo a maioria delas. Desabou também parte da barreira do Morro de Santo Antônio, na proximidade da atual Rua Treze de Maio. Entre os mortos nessa tragédia estava o famoso bêbado da cidade Bitu, motivo de chacota da garotada moradora nas redondezas do Morro do Castelo.
O autor ainda registra o “dilúvio” que caiu sobre a cidade, como a anunciar o fim do mundo, às 15h30 do dia 10 de outubro de 1864. Caíam pedras de gelo do “tamanho de avelãs” em tanta quantidade que as ruas ficaram cobertas. Destruiu várias edificações e destelhou todo o prédio onde funcionava a Fábrica de Gás, existente na atual Avenida Presidente Vargas. Esse problema se agravou com o adensamento de construções e a falta de educação da população, que joga nos logradouros e cursos de água lixo e outros dejetos.
Muitas edificações também eram destruídas pelo fogo, em função do sistema perigoso de iluminação com velas, pelo uso de combustível à base de óleo de baleia, principalmente, o gás (a partir de 1854) etc. e o uso de muita madeira nas construções. A Câmara de Vereadores chegou a estabelecer a proibição do uso do pinho-de-riga, em estrutura, piso e telhados por considerar essa madeira muito vulnerável ao fogo.
Nas construções recentes, a origem de muitos incêndios está na sobrecarga das instalações elétricas, na impropriedade dessas instalações com o uso de materiais inadequados e misturas de redes que deveriam ser separadas, como eletricidade e gás. Contribui para aumento e propagação desses sinistros a quantidade de objetos, revestimentos decorativos, móveis etc. de material inflamável como plásticos, papel, madeira e outros.
Poder público, construtores e empreendedores de edificações
Quando os administradores públicos não governam visando os interesses coletivos e a qualidade de vida da população urbana, principalmente no caso de megalópoli como o Rio de Janeiro, o espaço urbano gerado torna-se o lodaçal apropriado à proliferação desses seres desumanos que exploram a cidade.
A legislação urbanística e edilícia da cidade do Rio de Janeiro, em sua essência, é para servir a especulação imobiliária e punir a Classe Média trabalhadora, que tem endereço, que paga IPTU e todas as demais taxas municipais ― incêndio, iluminação dos logradouros etc. Para ela, o rigor da Lei e para os seus extremos ― os pobres que vivem em áreas de risco (por falta de opção) e os ricos ―, a benesse da omissão do poder público.
Vejam os acréscimos nos edifícios da orla da Zona Sul ― quantos andares foram construídos, acima do último pavimento! Depois regularizam esses acréscimos através da “mais-valia”.
É o caso do edifício Liberdade (o mais alto), que era escalonado nos últimos andares e a Prefeitura aprovou acrescê-los até a fachada voltada para a Rua Treze de Maio.
A Legislação municipal (desde o Código de 1937) incentiva a verticalização das edificações, construídas coladas umas às outras, prejudicando a circulação do ar, a insolação dos cômodos e permite o tapamento dos acidentes geográficos (caso do Morro da Viúva) que formam a bela paisagem carioca. Sem falar que, no período de construção desses espigões, os prédios vizinhos são danificados, gerando eternos conflitos de indenizações que se arrastam anos a fio.
Essas barreiras arquitetônicas são focos de propagação de sinistros, como ocorreu no caso dos três prédios. Devemos lembrar que o Teatro Municipal escapou por ter uma rua separando-o dos demais e porque os prédios ruíram sem inclinar em sua direção.
Ou mudamos esse conluio pernicioso entre o poder público e os exploradores da cidade, ou teremos que apelar, como fez Estácio de Sá, para a proteção de São Sebastião.
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