Cabe uma breve explanação sobre os termos “crônica” e “folhetim”. Crônica originalmente designava uma “compilação de fatos históricos” (ver Houaiss). O livro bíblico Crônicas relata episódios da história dos hebreus. A partir da segunda metade do século XIX, o termo passa a designar “um gênero híbrido, situando-se entre o jornalismo e a literatura, alimentando-se de acontecimentos do dia-a-dia” (Petar Petrov, “A Crônica Ensaística de Arnaldo Saraiva”). É neste sentido do termo que Machado de Assis assina uma coluna denominada CHRONICA na revista O Futuro. Já o folhetim era uma seção, geralmente na parte inferior da página do jornal, onde um escritor publicava uma coluna com uma crônica, ou um romance em capítulos (que poderia depois ser lançado em livro). Neste último sentido, nas novas mídias do século XX, deu lugar à “novela” de rádio e televisão.
Alienado versus ajuizado
Nem sempre é fácil
distinguir, neste fim de século, um alienado de um ajuizado; ao contrário, há
destes que parecem aqueles, e vice-versa. Tu que me lês, podes ser um
mentecapto, e talvez rias desta minha lembrança, tanta é a consciência que tens
do teu juízo. Também pode ser que o mentecapto seja eu. [O tema da relatividade
da doença mental havia sido explorado por Machado em “O Alienista”, de 1882.] (“A
Semana”, Gazeta de Notícias, 30/8/1896)
Animais
Cada homem simpatiza com
um animal. Há quem goste de cães: eu adoro-os. Um cão, sobretudo se me conhece,
se não guarda a chácara de algum amigo, aonde vou, se não está dormindo, se não
é leproso, se não tem dentes, oh! um cão é adorável.
Outros amam os gatos.
São gostos; mas sempre notarei que esse quadrúpede pachorrento e voluptuoso é
sobretudo amado dos homens e mulheres de certa idade.
Os pássaros tem seus
crentes. Alguns gostam de todo o bicho careta. Não são raros os que gostam do
bicho de cozinha.
Eu não gosto do cavalo.
Não gosto? Detesto-o;
acho-o o mais intolerável dos quadrúpedes. É um fátuo, é um pérfido, é um
animal corruto. Sob pretexto de que os poetas o têm cantado de um modo épico ou
de um modo lírico; de que é nobre; amigo do homem; de que vai à guerra; de que
conduz moças bonitas; de que puxa coches; sob o pretexto de uma infinidade de
complacências que temos para com ele, o cavalo parece esmagar-nos com sua
superioridade. Ele olha para nós com desprezo, relincha, prega-nos sustos, faz
Hipólito em estilhas. É um elegante perverso, um tratante bem educado; nada
mais.
Vejam o burro. Que mansidão! Que filantropia! Esse puxa a carroça que nos traz água, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carvão e hortaliças, — puxa o bond [bonde], coisas todas úteis e necessárias. No meio de tudo isso apanha e não se volta contra quem lhe dá. Dizem que é teimoso. Pode ser; algum defeito é natural que tenha um animal de tantos e tão variados méritos. Mas ser teimoso é algum pecado mortal? Além de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo é uma perversidade, no burro é um argumento, ultima ratio. (“História de Quinze Dias”, Ilustração Brasileira, 15/8/1876)
Ano Novo
Devo despedir-me dos
leitores até para o ano. O de 1861 está a retirar-se, e o de 1862 bate à porta.
Como todo ano novo, este antolha-se rico de esperanças, com uma cornucópia
inesgotável de felicidades. Como todo o ano velho, o de 1861 desaparece coberto
de maldições. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro,
29/12/1861)
Abre-se o ano de 63. Com
ele se renovam esperanças, com ele se fortalecem desanimados. Reunida à família
em torno da mesa, hoje mais galharda e profusa, festeja o ano que alvoroce, de
rosto alegre e desafogado coração. 62, decrépito, enrugado, quebrantado e mal
visto, rói a um canto o pão negro do desgosto que lhe atiram tantas esperanças
malogradas, tantas confianças iludidas. Pobre ano de 62! Deverei eu entrar no
coro dos acusadores? Que podias fazer? Tiveste contra ti os elementos, o céu e
a terra, os homens e as coisas; a tua vontade era sincera, mas a tua força era
comparativamente nula. Toma o bordão e segue o caminho da eternidade; olha sem
desgosto as festas com que é recebido teu jovem irmão; daqui a doze meses,
estará como tu, velho, enrugado, mal visto e apupado. É a eterna ordem das
coisas. (Crônicas, O Futuro, 1/1/1863
Antirrepublicanismo
Quanto às minhas
opiniões públicas, tenho duas, uma impossível, outra realizada. A impossível é
a republica de Platão. A realizada é o sistema representativo. É sobretudo como
brasileiro que me agrada esta última opinião, e eu peço aos deuses (também
creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia
seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais
iluminou..
Não frequento o paço,
mas gosto do imperador. Tem as duas qualidades essenciais ao chefe de uma
nação: é esclarecido e honesto. Ama o seu país e acha que ele merece todos os
sacrifícios. (“Cartas Fluminenses”, Diário do Rio de Janeiro, 5/3/1867)
Anúncio de casamento
“Uma viúva interessante, distinta, de boa família e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia idade, sério, instruído, e também com meios de vida, que esteja como ela cansado de viver só; resposta por carta ao escritório desta folha, com as iniciais M. R..., anunciando, a fim de ser procurada essa carta”.
Gentil viúva, eu não sou
o homem que procuras, mas desejava ver-te, ou, quando menos, possuir o teu retrato,
porque tu não és qualquer pessoa, tu vales alguma coisa mais que o comum das
mulheres. Ai de quem está só! dizem as sagradas letras; mas não foi a
religião que te inspirou esse anúncio. Nem motivo teológico, nem metafísico.
Positivo também não, porque o positivismo é infenso às segundas núpcias. Que
foi então, senão a triste, longa e aborrecida experiência? Não queres amar;
estás cansada de viver só.
E a cláusula de ser o
esposo outro aborrecido, farto de solidão, mostra que tu não queres enganar, nem
sacrificar ninguém. Ficam desde já excluídos os sonhadores, os que amem o
mistério e procurem justamente esta ocasião de comprar um bilhete na loteria da
vida. Que não pedes um diálogo de amor, é claro, desde que impões a cláusula da
meia idade, zona em que as paixões, arrefecem, onde as flores vão perdendo a
pôr purpúrea e o viço eterno. Não há de ser um náufrago, à espera de uma taboa
de salvação, pois que exiges que também possua. E há de ser instruído, para
encher com as luzes do espírito as longas noites do coração, e contar (sem as
mãos presas) a tomada de Constantinopla.
Viúva dos meus pecados,
quem és tu, que sabes tanto? (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 17/7/1892)
Artes, mau gosto das
Acho triste que certo gênero de arte ande muito em moda entre nós, e que se perdessem as tradições das boas obras e do bom gosto. (“Pontos e Vírgulas”, Semana Ilustrada, 10/11/1867)
Astronomia
A astronomia é, com efeito, uma bebedeira de léguas. As léguas são as polegadas do espaço. O menos que ali há, são milhares. Dá vertigem a leitura daqueles milhões de bilhões de trilhões de quatrilhões. Entendamo-nos: dá vertigem aos meus amigos, porque eu cá, – falo a minha verdade – acho que é muito mais longe ir a pé daqui da Rua do Ouvidor ao saco do Alferes [enseada, no atual bairro do Santo Cristo, que com a construção do cais do porto, desapareceu]. Que são trilhões de trilhões de léguas, em relação ao infinito? Nada; ao passo que daqui ao saco do Alferes é deveras um estirão [caminhada extensa]. (“Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 23/8/1885)
O que me agrada particularmente nos mestres da astronomia são os algarismos. Como essa gente joga os milhões e bilhões! Para eles umas mil léguas representam pouco mais que de Botafogo ao Catete… […] E o tempo? Quem não tiver cabeça rija cai por força no chão; dá vertigens todo esse turbilhão de números inumeráveis. Ainda não vi astrônomo que, metendo a mão no bolso, não trouxesse pegados aos dedos uns dez mil anos pelo menos. Como lhes devem parecer ridículas as nossas semanas! A própria moeda nacional, inventada para dar estímulo e grandeza à gente, os seiscentos, os oitocentos mil-réis, que tanto assombram o estrangeiro novato, para os astrônomos valem pouco mais que coisa nenhuma. Falem-lhes de milhões para cima.
Se eu tivesse vagar ou disposição, puxava os colarinhos à filosofia e diria naquele estilo próprio do assunto que esta nossa deleitação a respeito dos trilhões astronômicos é um modo de consolar a brevidade dos nossos dias e do nosso tamanho. Parece-nos assim que nós é que inventamos os tempos e os espaços; e não somente as dimensões e os nomes. Uma vez que os inventamos, é que eles estavam em nós.
Muita gente ficará confusa com o milhão de séculos de duração da Terra. Outras dirão que, se isto não é eterno, não vale a pena escrever nem esculpir ou pintar. Lá, eterno como se costuma dizer, não é; mas aí uns dez séculos, ou mesmo cinco, é o que se pode chamar (com perdão da palavra) um retalho de eternidade. (“Bons Dias”, Gazeta de Notícias, 26/8/1888)
Aterro da Baía da Guanabara
Entre parêntesis, não se
pense que sou oposto a qualquer idéia de aterrar parte da nossa baía. Sou de
opinião que temos baía de mais. O nosso comércio marítimo é vasto e numeroso,
mas este porto comporta mil vezes mais navios dos que entram aqui, carregam e
descarregam, e para que há de ficar inútil uma parte do mar? Calculemos que se
aterrava metade dele; era o mesmo que alargar a cidade. Ruas novas, casas e
casas, tudo isso rendia mais que a simples vista da água movediça e sem
préstimo. [Aparentemente trata-se de ironia, mas Machado mal imaginava que um
dia a baía seria aterrada, sim, para a construção de um parque!] (“A Semana”, Gazeta
de Notícias, 25/2/1894)
Bom senso, perda do
Ó Bom Senso! ó desterrado do século! quando voltarás a este mundo para repor as coisas nos seus eixos? Sem ti matam-se e descompõem-se os homens, fazem-se desfazem-se governos, cruzam-se os interesses, campeia a vaidade, domina a força, sob todas as formas, da espada e do número, sem ti andamos em perpétuo conflito, sem ti vamos ter a política-xadrez, a política-uniformidade, a política-alinhamento. Quando voltarás a este mundo, ó Bom Senso, ó meu amigo? (“Pontos e Vírgulas”, Semana Ilustrada, 13/12/1868)
Bondes elétricos, inauguração
Não tendo assistido a
inauguração dos bonds elétricos, deixei de falar neles. Nem sequer
entrei em algum, mais tarde, para receber as impressões da nova tração e
contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana. Anteontem, porém, indo pela
Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos elétricos, que descia.
Era o primeiro que estes meus olhos viam andar.
Para não mentir, direi o
que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro [por força
do hábito, Machado chama o condutor do bonde elétrico de “cocheiro”]. Os olhos
do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar
de superioridade. Posto não fosse feio, não eram as prendas físicas que lhe
davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond
elétrico, mas a própria eletricidade. [...]
Em seguida, admirei a
marcha serena do bond, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da
brisa invisível e amiga. Mas, como íamos em sentido contrário, não tardou que
nos perdêssemos de vista, dobrando ele para o Largo da Lapa e Rua do Passeio, e
entrando eu na Rua do Catete. Nem por isso o perdi de memória. (“A Semana”, Gazeta
de Notícias, 16/10/1892)
Bonde elétrico, foto de 3/4/1907 de Augusto Malta |
Calor carioca
O prazo é longo, mas
desta vez a história é curta.
Porquanto: — eu não
posso gastar cinquenta resmas de papel a dizer:
— Que calor!
—Faz muito calor!
— O calor esteve
horrível.
— Estamos ameaçados de
uma horrível seca!
—Etc.
—Etc.
Posso? Não posso. Seria
matar-me a mim e ao leitor, — dois casos graves, e não sei qual deles mais
grave, não sei. Talvez... não, não digo; sejamos modestos e não magoemos o
leitor.
Ora, a história do mês
passado não é outra. Aqui e ali um acontecimento, raro, medroso e pálido com
algumas exceções), mas a grande história, essa pertence ao fogo lento com que
este verão assentou de matar-nos.
Felizes os que verão a
Petrópolis, Teresópolis, Friburgo, todas essas cidades de nomes gregos ou
germânicos, e clima ainda mais germânico do que grego. Esses não sabem o que é
pôr a alma pela boca fora, trabalhar suando, como suam as bicas da rua; não
sabem o que é ter brotoeja, não dormir, não comer, e (daqui a pouco tempo) não
beber ...
Tu e eu, leitor agarrado
à capital, tu e eu sabemos o que foi o demônio do Fevereiro, mês
inventado pelo diabo. Logo, escusa contar-te a história do calor, que tu sabes
tanto como eu, talvez melhor do que eu. (“História dos Trinta Dias”, Ilustração Brasileira, março de 1878)
Carrapatos
Vê-se perfeitamente que
Deus, depois de formado o grandioso da Criação, quis também mostrar a sua
divina perfeição dando vida aos átomos da matéria. É grandeza descer até os
insetos! O inseto não é uma excrescência na vida do Cosmos, é uma verdade da
harmonia estabelecida pela mão de Deus. Perguntai ao inseto por que existe.
Dar-vos-á ele: — Porque existe o homem. Era preciso o contrabalanço nos seres
surgidos do caos. O elefante erguia a tromba, o condor esvoaçava entre as
nuvens, a baleia chafarizava nos mares, a boa constritor desenrolava-se nas
estradas. O inseto tornava-se uma necessidade. Entre as miríadas de insetos,
que volteiam nos ares, chamejam nas ervas, escorregam pelos charcos, animalizam
a atmosfera, ou se entranham pelas carnes, distingue-se o carrapato, que, pelo
seu perfume (ao princípio asqueroso, mas depois reconhecido como muito suave e
medicinal), e pela forma chata e arredondada do seu corpo, faz-se querido e
apreciado do homem, que, se não for ingrato, deve mostrar-se reconhecido à
amizade que lhe consagra, prendendo-se-lhe ao corpo e sugando-lhe o sangue.
(Carrapatos Políticos, Crônicas do Dr. Semana, Semana Ilustrada,
28/9/1862)
Catastrofismo
Um jornal desta Corte
deu, há dias, aos seus leitores uma notícia tão grave quão sucinta. É nada
menos que a predição de uma catástrofe universal. Diz a folha que o professor
Newmager, de Melbourne, prediz que em 1865 um cometa passará tão próximo à
terra, que esta corre sérios riscos de perecer. Renovam-se, pois, os sustos
causados pela profecia do cometa 13 de junho, sustos que, por felicidade nossa,
não foram confirmados pela realidade. A terra, que tem escapado a tantos
cometas – aos celestes, como o de Carlos V [cometa de Halley em 1831] – aos
terrestres, como o rei dos Hunos – aos marinhos, como os piratas normandos — a
terra acha-se de novo ameaçada de ser absorvida por um dos ferozes judeus
errantes do espaço. (“Ao Acaso”, Diário do Rio de Janeiro, 3/7/1864) [Em
crônica de 31/1/1865 neste mesmo jornal, Machado relata que “o cometa
paira sobre nossas cabeças, mas é um cometa inofensivo, tênue, descorado, que
ainda não destruiu a menor coisa, e que promete retirar-se em perfeito estado
de paz” Em 1973, a mesma sequência de
expectativas estrondosas/decepção deu-se com o Cometa Kohoutek.]
Chineses, capacidade de trabalho
Depois, o trabalho. Que
outro bicho humano iguala o Chim [chinês]? Um cego, entre nós, pega da viola e
vai pedir esmola cantando. Ora, o padre João de Lucena refere que na China
todos os cegos trabalham de um modo original. São distribuídos pelas casas
particulares e postos a moer arroz ou trigo, mas de dois em dois, “porque fique
assim a cada um menos pesado o trabalho com a companhia e conversação do
outro”. Os aleijados, se não têm pernas, trabalham de mãos; os que não tem
braços, andam ao ganho com uma cesta pendurada ao pescoço, para levar compras
às casas dos que os chamam, — ou servem de correio a pé. Aproveita-se ali até o
último caco de homem. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 18/9/1892)
Chuva
Além de outras
diferenças que se podem notar entre o sol e a chuva, há esta – que o sol,
quando nasce, é para todos, como diziam as tabuletas de charutaria de outro
tempo, e a chuva e só para alguns.
Hoje, por exemplo,
levanto-me com chuva, e fico logo aborrecido, desejando não sair de casa, não
ler, não escrever, não pensar – não fazer nada. A mesma coisa acontece ao
leitor, com a diferença que ele faz ou não faz nada se quer, e eu hei de pegar
do papel e da tinta, e escrever para aí alguma coisa, tenha ou não vontade e
assunto. (“Balas de Estalo”, Gazeta de
Notícias, 26/10/1885)
Colônia da Inglaterra
Dizem que somos colônia da Inglaterra; não sei se somos, mas é preciso provar que não. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 10/11/1861)
Constantinopla
Dizem os que têm
visitado a antiga cidade de Constantino que há uma grande diferença entre um
cemitério turco e um cemitério cristão. Aquele não inspira o sentimento que se
experimenta quando se entra neste. O turco entrelaça a morte à vida, de modo
que não se passeia com terror ou melancolia entre duas alas de túmulos. A razão
desta diferença parece estar na própria religião. O que quereis que seja a
morte para um povo a quem se promete na eternidade, a eternidade dos gozos mais
voluptuosos que a imaginação mais viva pode imaginar? Esse povo, que vive no requinte
dos prazeres materiais, só entende o que fala aos sentidos, e considera bem
aventurados os que morreram que já gozam ou estão perto de gozar os prazeres
prometidos pelo profeta. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro,
1/11/1861)
Conto do vigário
De quando em quando
aparece-nos o conto do vigário. Tivemo-lo esta semana, bem contado, bem ouvido,
bem vendido, porque os autores da composição puderam receber integralmente os
lucros do editor. O conto do vigário é o mais antigo gênero de ficção que se
conhece. A rigor, pode crer-se que o discurso da serpente, induzindo Eva a
comer o fruto proibido, foi o texto primitivo do conto. (“A Semana”, Gazeta
de Notícias, 31/3/1895)
Cruzeiro como nome da nossa moeda
Tem a Inglaterra a sua
libra, a França o seu franco, os Estados Unidos o seu dólar, por que não
teríamos nós nossa moeda batizada? Em vez de designá-la por um número, e por um
número ideal – vinte mil-réis – por que lhe não poremos um nome – cruzeiro
– por exemplo? Cruzeiro não é pior que outros, e tem a vantagem de ser nome
e de ser nosso. Imagino até o desenho da moeda; e de um lado a efígie imperial,
do outro a constelação... Um cruzeiro, cinco cruzeiros, vinte cruzeiros. [A
unidade monetária brasileira viria a receber o nome sugerido por Machado de
Assis em 5 de outubro de 1942, sendo que a de 100 ostentaria a efígie imperial,
de D. Pedro II.] (“Bons Dias”, Gazeta de Notícias, 30/3/1889)
Desenvolvimento do Brasil, obstáculo ao
Mercê de Deus, não é
capacidade que nos falta; talvez alguma indolência e certamente a mania de
preferir o estrangeiro, eis o que até hoje tem servido de obstáculo ao
desenvolvimento do nosso gênio industrial. E pode-se dizê-lo, não é uma simples
falta, é um pecado ter um país tão opulento e desperdiçar os dons que ele nos
oferece, sem nos prepararmos para essa existência pacífica de trabalho que o
futuro prepara às nações. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro,
1/12/1861)
Dilúvio
O velho Dumas, ou Dumas
I, em uma daquelas suas deliciosas fantasias escreveu esta frase: “Um dia, os
anjos viram uma lágrima nos olhos do Senhor: essa lágrima foi o dilúvio.”
Uma lágrima! Ai, uma lágrima! Quem nos dera essa lágrima única! Mas o mundo cresceu do dilúvio para cá, a tal ponto que um lágrima apenas chegaria a alagar Sergipe ou a Bélgica. Agora, quando os anjos vêem alguma coisa nos olhos do Senhor, já não é aquela gota solitária, que tombou e alagou um mundo nascente e mal povoado. Caem as lágrimas às quatro e quatro, às vinte e vinte, às cem e cem, é um pranto desfeito, uma lamentação contínua, um gemer que se desfaz em ventos impetuosos, contra os quais nada podem os homens, nem as minhas árvores, que se estorcem com desespero. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 29/5/1892)
Espiritismo
Há muito que os
espíritas afirmam que os mortos escrevem pelos dedos dos vivos. Tudo é possível
neste mundo e neste final de um grande século. (“A Semana”, Gazeta de
Notícias, 13/9/1896)
Mal adivinham os
leitores onde estive sexta-feira. Lá vai; estive na sala da Federação Espírita
Brasileira, onde ouvi a conferência que fez o Sr. M. F. Figueira sobre o
espiritismo.
Sei que isto, que é uma
novidade para os leitores, não o é menos para própria Federação, que me não
viu, nem me convidou; mas foi isto mesmo que me converteu à doutrina, foi este
caso inesperado de lá entrar, ficar, ouvir e sair, sem que ninguém desse pela
coisa.
Confesso a minha
verdade. Desde que li em um artigo de um ilustre amigo meu, distinto médico, a
lista das pessoas eminentes que na Europa acreditam no espiritismo, comecei a
duvidar da minha dúvida. Eu, em geral, creio em tudo aquilo que na Europa é
acreditado. Será obcecação, preconceito, mania, mas é assim mesmo, e já agora
não mudo, nem que me rachem. Portanto, duvidei, e ainda bem que duvidei de mim.
Estava à porta do
espiritismo; a conferência de sexta-feira abriu-me a sala de verdade.
Achava-me em casa, e
disse comigo, dentro d'alma, que, se me fosse dado ir em espírito à sala da
Federação, assistir à conferência, jurava converter-me à doutrina nova.
De repente, senti uma
coisa subir-me pelas pernas acima, enquanto outra coisa descia pela espinha
abaixo; dei um estalo e achei-me em espírito, no ar. No chão jazia o meu triste
corpo, feito cadáver. Olhei para um espelho, a ver se me via, e não vi nada;
estava totalmente espiritual. Corri à janela, saí, atravessei a cidade, por
cima das casas, até entrara na sala da Federação. (“Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 5/10/1885)
Estrada de ferro
Nenhum homem de gosto,
que tenha em apreço as maravilhas da natureza e os prodígios do braço humano,
pôde deixar de ir ver, ao menos uma vez na vida, os trabalhos arrojados e os
panoramas esplendidos que lhe oferece uma viagem pela estrada de ferro de D.
Pedro II.
Direi mesmo que ali a
natureza cede o passo ao homem, tão pasmosas são as dificuldades que a
perseverança e a ciência conseguiram vencer.
O futuro das estradas de
ferro no Brasil está garantido e seguro. Quem venceu até hoje, vencerá o que
falta. (“Ao Acaso”, Diário do Rio de Janeiro, 26/9/1864)
Inauguração da Estrada de Ferro Pedro II em 29 de março de 1858 |
Evangelho do Diabo, versículos 20 e 21
“20. Não queirais
guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e
donde os ladrões os tiram e levam.
“21. Mas remetei os
vossos tesouros para algum banco de Londres, onde nem a ferrugem, nem a traça
os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo. (“A
Semana”, Gazeta de Notícias, 4/9/1892)
Feminismo
Eu quisera uma nação,
onde a organização política e administrativa parasse nas mãos do sexo amável,
onde, desde a chave dos poderes até o último lugar de amanuense, tudo fosse
ocupado por essa formosa metade da humanidade. O sistema político seria
eletivo. A beleza e o espírito seriam as qualidades requeridas para os altos
cargos do Estado, e aos homens competiria exclusivamente o direito de votar.
(“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 21/11/1861)
Uma mulher com cem
defeitos é preferível a um homem com dez defeitos apenas. Falo dos defeitos
morais, porque os físicos... (“Conversa com as Mulheres”, Semana Ilustrada,
28/5-18/6/1865)
Melhor notícia do que essa é a de ter sido aprovada, na Bahia, uma senhora que fez exame de dentista. Registro o acontecimento, com o mesmo prazer com que tomo nota de outros análogos; vai-se acabando a tradição, que excluía o belo sexo do exercício de funções, até agora unicamente masculinas. É um característico do século: a mulher está perdendo a superstição do homem. Tomou-lhe o pulso; compreendeu que se ele fez a guerra de Troia, e se serviu quatorze anos a Labão, foi unicamente por causa dela; e desde que o reconheceu, subjugou-o. (“Notas Semanais”, O Cruzeiro, 30/6/1878)
Finanças, ignorância sobre
E por que não sei eu
finanças? Por que, ao lado dos dotes nativos com que aprouve ao céu
distinguir-me entre os homens, não possuo a ciência financeira? Por que ignoro
eu a teoria do imposto, a lei do câmbio, e mal distingo dez mil-réis de dez
tostões? Nos bonds [bondes] é que me sinto vexado. Há sempre três e
quatro pessoas (principalmente agora) que tratam das coisas financeiras e
econômicas, e das causas das coisas, com tal ardor e autoridade, que me
oprimem. É então que eu leio algum jornal, se o levo, ou roo as unhas, — vício
dispensável; mas antes vicioso que ignorante. (“A Semana”, Gazeta de
Notícias, 14/8/1892)
Guanabara
Tudo pode acontecer. Um
dia, quem sabe? Lançaremos uma ponte entre esta cidade e Niterói, uma ponte
política, entenda-se, nada impedindo que também se faça uma ponte de ferro. A
ponte política ligará os dois Estados, pois que somos todos fluminenses, e esta
cidade passará de capital de si mesma a capital de um grande Estado único, a
que se dará o nome de Guanabara. [A ponte Rio-Niterói foi inaugurada em 1974; o
Estado da Guanabara existiu de 1960 a 1975.] (“A Semana”, Gazeta de Notícias,
7/6/1896)
Hamlet
Eu, se tivesse de dar Hamlet
em língua puramente carioca, traduziria a célebre resposta do príncipe da
Dinamarca: Words, words, words, por esta: Boatos, boatos, boatos. Com
efeito, não há outra que melhor diga o sentido do grande melancólico. Palavras,
boatos, poeira, nada, coisa nenhuma. (“A Semana”, Gazeta de Notícias,
23/4/1893)
Inglês
Li até, que um condenado
à morte, perguntando-se-lhe, na manhã do dia da execução, o que queria,
respondeu que queria aprender inglês. Há de ser invenção; mas achei o desejo
verossímil, não só pelo motivo aparente de dilatar a execução, mas ainda por
outro mais sutil e profundo. A língua inglesa é tão universal, tem penetrado de
tal modo em todas as partes deste mundo, que provavelmente é a língua do outro
mundo. O réu não queria entrar estrangeiro no reino dos mortos. (“A Semana”, Gazeta
de Notícias, 25/6/1893)
Intolerância
Causa tédio ver como se caluniam os caracteres, como se deturpam as opiniões, como se invertem as ideias a favor de interesses transitórios e materiais, e da exclusão de toda a opinião que não comunga com a dominante. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 22/2/1862)
Inverno
Eu adoro o frio: talvez
por ser filho dele; nasci no próprio dia em que o nosso inverno começa.
[Machado nasceu em 21 de junho de 1839.] (“A Semana”, Gazeta de Notícias,
1/8/1893)
Jogo do bicho
Venceu o burro. Digo
venceu para usar do termo impresso; mas o verbo da conversação é dar. Deu o
burro, amanhã dará o macaco, depois dará a onça, etc. Sexta-feira, achando-me
numa loja, vi entrar um mancebo, extraordinariamente jovial, — por natureza ou
por outra coisa — e bradava que tinha dado a avestruz, expressão obscura para
quem não conhece os costumes dos nossos animais. É mais breve, mais viva, e não
duvido que mais verdadeira. Não duvido de nada. A zoologia corre assim parelha
com a loteria, e tudo acaba em ciência, que é o fim da humanidade. (“A Semana”,
Gazeta de Notícias, 17/3/1895)
Jogo do bicho (gravura do início do século XX) |
Jóqueis, suborno dos
Parece que um ou mais
diretores de clubes esportivos acusaram os book-makers de atos de
corrupção. Já apanhei a questão no meio, não posso dar todos os pormenores.
Trata-se do suborno de jóqueis, para que estes façam perder os cavalos que lhes
estão confiados, a fim de que tais e tais outros ganhem. Justamente indignados,
os book-makers repeliram a acusação, retorquindo que os próprios diretores
é que subornam os jóqueis. Não tendo fundamento para crer em nenhum dos dois
libelos, rejeito-os ambos. Uma coisa, porém, é afirmada por uma e outra banda,
e dada por verdadeira: é que há jóqueis subornados.
Este é o ponto. É o que
se pode chamar uma bela sociedade. Todos os domingos e dias feriados, centenas
de pessoas atiram-se aos prados de corridas. Outras centenas, menos andareiras,
deixam-se ficar aqui mesmo, apostando pelo telefone. (“A Semana”, Gazeta de
Notícias, 2/4/1893)
Jornais antigos
Ó doce, ó longa, ó inexprimível melancolia dos jornais velhos! Conhece-se um homem diante de um deles. Pessoa que não sentir alguma coisa ao ler folhas de meio século, bem pode crer que não terá nunca uma das mais profundas sensações da vida, - igual ou quase igual à que dá a vista das ruínas de uma civilização. Não é a saudades piegas, mas a recomposição do extinto, a revivescência do passado, a maneira de Ebers, a alucinação erudita da vida e do movimento que parou. Jornal antigo é melhor que cemitério, por esta razão que no cemitério tudo está morto, enquanto que no jornal está tudo vivo. Os letreiros sepulcrais, sobre monótonos, são definitivos: aqui jaz, aqui descansam, orai por ele! As letras impressas na gazeta antiga são variadas, as notícias aparecem recentes; é a galera que sai, a peça que se está representando, o baile de ontem, a romaria de amanhã, uma explicação, um discurso, dois agradecimentos, muitos elogios; é a própria vida em ação. (“Bons Dias”, Gazeta de Notícias, 14/6/1889)
Lei Áurea
Houve sol, e grande sol,
naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou,
e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos
caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor,
hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era
delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter
visto. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 14/5/1893)
Leitura, falta de
[O] nosso movimento literário é dos mais insignificantes possíveis. Poucos livros se publicam e ainda menos se leem. Aprecia-se mundo a leitura superficial e palhenta, do mal travado e bem acidentado romance, mas não passa daí o pecúlio literário do povo. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 24/3/1862)
Libertação dos escravos
De interesse geral é o
fundo da emancipação, pelo qual se acham libertados em alguns municípios 230
escravos. Só em alguns municípios!
Esperemos que o número
será grande quando a libertação estiver feita em todo o império.
A lei de 28 de setembro
fez agora cinco anos. Deus lhe dê vida e saúde! Esta lei foi um grande passo na
nossa vida. Se tivesse vindo uns trinta anos antes estávamos em outras
condições.
Mas há 30 anos, não veio
a lei, mas vinham ainda escravos, por contrabando, e vendiam-se às escancaras
no Valongo. Além da venda, havia o calabouço. Um homem do meu conhecimento
suspira pelo azorrague .
– Hoje os escravos estão
altanados, costuma ele dizer. Se a gente dá uma sova num, há logo quem
intervenha e até chame a polícia. Bons tempos os que lá vão! Eu ainda me lembro
quando a gente via passar um preto escorrendo em sangue, e dizia: "Anda
diabo, não estás assim pelo que eu fiz!" — Hoje...
E o homem solta um suspiro, tão de dentro, tão do coração... que faz cortar o dito. Le pauvre homme! (“História de Quinze Dias”, Ilustração Brasileira, 1/10/1876)
Mato Grosso, tentativa separatista nos primórdios da República
Mato Grosso foi o
assunto principal da semana. Nunca ele esteve menos Mato, nem mais Grosso. Tudo
se esperava daquelas paragens, exceto uma república, se são exatas as notícias
que o afirmam, porque há outras que o negam; mas neste caso a minha regra é
crer, principalmente se há telegrama. Ninguém imagina a fé que tenho em
telegramas. Demais, folhas européias de 13 a 14 do mês passado, falam da nova
república transatlântica como de coisa feita e acabada. Algumas descrevem a
bandeira.
Duas dessas folhas (por
sinal que londrinas) chegam a aconselhar ao governo da União que abandone Mato
Grosso, por lhe dar muito trabalho e ficar longe, sem real proveito. Se eu
fosse governo, aceitava o conselho, e pregava uma boa peça à nova república,
abandonando-a, não à sua sorte, como dizem as duas folhas, mas à Inglaterra. A
Inglaterra também perdia no negócio, porque o novo território ficava-lhe muito
mais longe; mas, sendo sua obrigação não deixar terra sem amanho, tinha de suar
o topete só em extrair minerais, desbastar, colonizar, pregar, fazer em suma de
Mato Grosso um mato fino.
Eu, rigorosamente, não tenho nada com isto. Não perco uma unha do pé nem da mão, se perdermos Mato Grosso. E não é melhor que me fique antes a unha que Mato Grosso? Em que é que Mato Grosso é meu? (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 8/5/1892)
Mediocridade
Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão; para os que têm a fortuna de não se alarem além de uma esfera comum é que nos fornos do estado se coze e tosta o apetitoso pão-de-ló, que é depois repartido por eles, para glória de Deus e da pátria. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 1/11/1861)
Mocidade versus velhice
Se a velhice quer dizer
cabelos brancos, se a mocidade quer dizer ilusões fracas, não sou moço nem
velho. Realizo literalmente a expressão francesa: Un homme entre deux âges.
Estou tão longe da infância como da decrepitude; não anseio pelo futuro, mas
também não choro pelo passado. Nisto sou exceção dos outros homens que, de
ordinário, diz um romancista, passam a primeira metade da vida a desejar a
segunda, e a segunda a ter saudades da primeira. (“Cartas Fluminenses”, Diário
do Rio de Janeiro, 5/3/1867)
Morte
Qualquer de nós teria
organizado este mundo melhor do que saiu. A morte, por exemplo, bem podia ser
tão-somente a aposentadoria da vida, com prazo certo. Ninguém iria por moléstia
ou desastre, mas por natural invalidez
[...] (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 6/9/1896)
Mulheres
Dedico este folhetim às
damas.
Já me aconteceu ouvir, a
poucas horas de intervalo e a poucas braças de distância, duas respostas
contrárias a esta mesma pergunta:
– Que é a mulher?
Um respondeu que a
mulher era a melhor coisa do mundo; outro que era a pior.
O primeiro amava e era
amado; o segundo amava, mas não o era. Cada um apreciava no ponto de vista do
sentimento pessoal.
Entre as duas definições
eu prefiro uma terceira, a de La-Bruyère:
– As mulheres não têm
meio termo: são melhores ou piores que os homens. (“Ao Acaso”, Diário do Rio
de Janeiro, 7/2/1865)
Estudo de Moça (acervo da Biblioteca Nacional) |
Noé, arca de
Quinta-feira de manhã
fiz como Noé, abri a janela da arca e soltei um corvo. Mas o corvo não tornou,
de onde inferi que as cataratas do céu e as fontes do abismo continuavam
escancaradas. Então disse comigo: As águas hão de acabar algum dia. Tempo virá
em que este dilúvio termine de uma vez para sempre, e a gente possa descer e
palmear a Rua do Ouvidor e outros becos. Sim, nem sempre há de chover. Veremos
ainda o céu azul como a alma da gente nova. O sol, deitando fora a carapuça,
espalhará outra vez os grandes cabelos louros. Brotarão as ervas. As flores
deitarão aromas capitosos. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 1/7/1894)
Nonsense
Tumores sub
epidérmicos. — Operei 200. Estes
tumores são formados por uma substância perlea mais ou menos
consistente. Opero-os com uma simples manobra digital, ou quando muito com o
auxílio da extremidade aberta do cilindro oco da chave da máquina gnomônica de
Nuremberg. Todos quantos operei eram do rosto, e foram coroados de sucesso.
(Clínica cirúrgica do Dr. Semana, Crônicas do Dr. Semana, Semana Ilustrada,
8/12/1861)
Prometo [...] escrever a favor do comércio, da indústria da agricultura, da política, das artes, das ciências, das letras, das tretas, das ruas, das praças, dos becos, dos largos, dos fiscais, dos teatros, das câmaras municipais, dos permanentes, da armada, do exército, das finanças, dos veículos, do asseio público, da polícia, do clero, do povo, dos advogados, dos médicos, das parteiras, dos senadores, dos deputados, dos alfaiates, das camiseiras, das irmandades, dos jornalistas, dos colégios (em geral), dos capitalistas, dos banqueiros, dos proprietários, da guarda nacional, dos carniceiros, dos solicitadores, dos engenheiros, dos construtores, dos estaleiros, dos náuticos, dos homeopatas, das casas de saúde, dos dentistas, dos pedicuros, dos veterinários, dos boticários, dos taquígrafos, dos pintores, dos estatuários, dos professores de línguas, das bordadeiras, dos esgrimidores, dos ginásticos, dos músicos, dos afinadores, dos organistas, dos arquitetos, dos guarda-livros, dos agentes, dos contadores, dos negociantes, dos consignatários, dos mercadores, dos livreiros, dos aferidores, dos ourives, dos cerieiros, dos chapeleiros, dos charuteiros, dos bengaleiros, dos coristas, dos droguistas, dos curtidores, dos fruteiros, dos cerniceiros, dos armadores, dos lojistas, dos ferragistas, dos gravadores, dos marmoristas, dos fogueteiros, dos louceiros, das modistas, dos cabeleireiros, dos barbeiros, dos tabaqueiros, dos arrieiros, dos sementeiros, dos cutileiros, dos tintureiros, dos lapidários, dos cambistas, dos rebatedores, dos leiloeiros, dos despachantes, das floristas, dos trapicheiros, dos cocheiros, dos carros, dos tílburis, dos carroceiros, dos bauleiros, dos banheiros, dos belquiores, dos galvanistas, dos botiquineiros, dos calafates, dos pedreiros, dos caldeireiros, dos carpinteiros, dos colchoeiros, dos confeiteiros, dos corrieiros, dos amoladores, dos fotógrafos, dos douradores, dos empalhadores, dos azeiteiros, dos empresários, dos encadernadores, dos engarrafadores de vinhos, dos esculpidores, dos espelheiros, dos esmaltadores, dos espingardeiros, dos asfaltadores, dos queroseneiros, dos seleiros, das lavadeiras e engomadeiras, dos funileiros, dos maquinistas, das coleteiras, dos marceneiros, dos rolheiros, dos sebeiros, dos vinagreiros, dos foleiros, dos joalheiros, dos ferreiros, dos sineiros, dos picheleiros, dos gaioleiros, dos pasteleiros, dos hoteleiros, dos lampistas, dos litógrafos, dos bombeiros, dos canteiros, dos oleiros, dos padeiros, dos cenógrafos, dos relojoeiros, dos salsicheiros, dos serralheiros, dos urubus, dos tamanqueiros, dos tanoeiros, dos torneiros, dos vidraceiros, dos violeiros, dos pedestres, e mais entidades, que se oferecerem à minha pena. (Manifesto do Dr. Semana aos assinantes do seu jornal, Crônicas do Dr. Semana, Semana Ilustrada, 6/12/1863)
Vu pan Lélio,
Lamakatu apá ling-ling
"Balas de Estalo", mapapi tung? Keré siri mamma, ulama'i tiká.
Ton-ton pacamaré Rua do
Ouvidor nappi Botafogo, nappi Laranjeiras nappi Petrópolis gogô. China cava
miraka Rua do Ouvidor! Naka ling! tica milung! Ita marica armarinho, gavamacu
moça bonita, vala ravala balvão; caixeiro sika maripu derretido. Moçanigu vaia
peça fita, agulha, veludo, colchete, iva curva trapalhada. Moço lingu istu
passa na rua, che-beru pitigaia entra, namora, rini mamma.
Viliki xaxi xali
xaliman. Acalag ting-ting valixu. Upa Costa Braga relá minag katu Integridade
abaxung kapi a ver navios. Lamarika ana bapa bung? Gogô xupitô? Nepa in pavé.
Brasil desfalques latecatu. Inglese poeta, Shakespeare, kará: make money; upa
lamaré in língua Brasil: — mete dinheiro no bolso. Vaia, Vaia, gapaling
capita passa a unha simá teka laparika. Eting põe-se a panos; etang merú
xilindró.
[...]
Mandarim de 1ª classe.
TONG KONG SING (Carta de
um mandarim ao colunista, “Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 16/10/1883)
Eu, em criança, ouvi
contar a anedota de uma casa que ardia na estrada. Passa um homem, vê perto da
casa uma pobre velhinha chorando, e pergunta-lhe se a casa era dela.
Responde-lhe a velha que sim. – Então permita-me que acenda ali o meu charuto.
(“Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias,
28/5/1885)
DIÁLOGO DOS ASTROS
DOM SOL — Mercúrio, dá
cá os jornais do dia.
MERCÚRIO — Sim, meu
senhor. (Procurando os jornais). Sempre me admira muito como é que Vossa
Claridade pode ler tantos jornais. São todos interessantes? Olhe, aqui tem o Escorpião.
DOM SOL — Uns mais que
outros; mas ainda que não tivessem interesse nenhum, era preciso lê-los, para
saber do que vai pelo Universo. Já chegou a Via-Láctea?
MERCÚRIO — Aqui está.
DOM SOL — Esta folha é
das menores; tem uma circulação de trezentos bilhões de exemplares.
MERCÚRIO — Já não é mau!
Aqui está o Eclipse e a Fase...
DOM SOL — Não são tão
bons.
MERCÚRIO — O Crescente,
a Bela Estrela Canopo e a Revista das Constelações. Creio que
é tudo. Falta só o Cometa, mas, como sabe, só aparece de longe em longe;
dizem até que vai fechar a porta. [e assim por diante...] (“Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 20/6/1885)
Novidade, desejo de
Bem se podia comparar o
público àquela serpente — deus dos antigos mexicanos — que, depois de devorar
um alentado mamífero, prostra-se até que a ação digestiva lhe tenha esvaziado o
estômago; então o flagelo das matas corre em busca de novo repasto, emborca
novo animal pela garganta abaixo e cai em nova e profunda modorra de digestão.
Esquisita que pareça a comparação, o público é assim. Precisa de uma novidade e
de uma grande novidade; quando lhe aparece alguma, digere-a com placidez e
calma, até que desfeita ela, outra lhe fica ao alcance e lhe satisfaz a
necessidade imperiosa. Como o réptil monstro de que falei, o público não se
contenta com os manjares simples e as quantidades exíguas; é-lhe preciso bom e
farto mantimento. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro,
7/1/1862)
Olimpíadas, ressurreição das
Se quereis ver a
diferença de uma e outra ciência, comparai as alegrias vivas do nosso jardim
Zoológico [assunto anterior da crônica] com o projeto de ressuscitar em Atenas,
após dois mil anos, os jogos olímpicos. Realmente, é preciso ter grande amor a
essa ciência de farrapos para ir desenterrar tais jogos. Pois é do que trata
agora uma comissão, que já dispõe de fundos e boa vontade.
Está marcado o
espetáculo para abril de 1896. [De fato, os primeiros Jogos Olímpicos da Era
Moderna ocorreram em Atenas em 1896.] (“A Semana”, Gazeta de Notícias,
17/3/1895)
Passeios pela cidade
É meu costume, quando não tenho que fazer em casa, ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar à cidade de São Sebastião, matar o tempo. Não conheço melhor ofício, mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um homem, uma tabuleta, qualquer coisa basta a entreter o espírito, e a gente volta para casa “lesta e aguda”, como se dizia em não sei que comédia antiga.
Naturalmente, cansadas as pernas, meto-me no primeiro bonde, que pode trazer-me à casa ou à Rua Ouvidor, que é onde todos moramos. Se o bonde é dos que têm de ir por vias estreitas e atravancadas, torna-se um verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, para diante de uma carroça que despeja ou recolhe fardos . O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um cigarro; o condutor desce também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.
Ninguém sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a ideia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a ideia fica íntegra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também. (“Bons Dias”, Gazeta de Notícias, 21/1/1889)
Pessimismo
Quem põe o nariz fora da
porta, vê que este mundo não vai bem. A Agência Havas é melancólica. Todos os
dias enche os jornais, seus assinantes, de uma torrente de notícias que, se não
matam, afligem profundamente. (“A Semana”, Gazeta de Notícias,
6/10/1895)
Política, crítica à
O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política nada temos a invejar ao reino de Liliput. (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 29/12/1861)
Em verdade, será preciso esperar o carnaval para ver
mascarados? O carnaval nesta terra é constante, e é a política que nos oferece
o espetáculo de um contínuo disfarce [...] (“Comentários
da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 2/3/1862)
Os Vitrúvios [arquiteto romano antigo] do século querem fazer da política uma arquitetura, e esquecem justamente que a arquitetura compõe-se de linhas curvas e linhas retas. (“Pontos e Vírgulas”, Semana Ilustrada, 13/12/1868)
Povo musical (com pitadas de nonsense)
Um povo musical como é o nosso, pode chegar a substituir a prosa pela solfa, sem prejuízo do pensamento, e até com algum encanto. Quem sabe se os nossos netos, candidatos a um lugar na câmara, não serão compelidos a dar dois dedos de flauta aos eleitores? A zabumba, simples metáfora quando não figura nos batalhões, receberá o seu alvará de capacidade. Os instrumentos serão o distintivo dos partidos no parlamento; a uns a clarineta, que é áspera, impertinente e fanhosa; a outros a flauta e a guitarra. O apito passará a ser o cetro presidencial; o aparte terá um forte substituto no assobio. Quanto aos oradores, haverá a escala inteira, desde a harpa eólia até o realejo napolitano. (“Notas Semanais”, O Cruzeiro, 9/6/1878)
Pró-americanismo
Que os Estados Unidos começam de galantear-nos, é coisa fora de dúvida; correspondamos ao galanteio; flor por flor, olhadela por olhadela, apertão por apertão. Conjuguemos os nossos interesses, e um pouco também os nossos sentimentos; para estes há um elo, a liberdade; para aqueles, há outro, que é o trabalho; e o que são o trabalho e a liberdade senão as duas grandes necessidades do homem? Com um e outro se conquistam a ciência, a prosperidade e a ventura pública. (“Notas Semanais, O Cruzeiro, 2/6/1878)
Quiosques, fim dos
Que metro é preciso para
contar que vamos perder os quiosques? Dizem que o conselho municipal trata de
acabar com eles. Não quero que morram, sem que eu explique cientificamente a
sua existência. Logo que os quiosques penetraram aqui, foi nosso cuidado
perguntar às pessoas viajadas a que é que os destinavam em Paris, donde vinha a
imitação; responderam-me que lá eram ocupados por uma mulher, que vendia
jornais. Ora, sendo o nosso quiosque um lugar em que um homem vende charutos,
café, licor e bilhetes de loteria, não há nesta diferença de aplicação um saldo
a nosso favor? A diferença do sexo é a primeira, e porventura a maior; a rua
fez-se para o homem, não para a mulher, salvo a rua do Ouvidor. O charuto, tão
universal como o licor, é uma necessidade pública. Não cito o café; é a bebida
nacional por excelência. Quanto ao bilhete de loteria, esse emblema da luta de
Jacó com o anjo, que é como eu considero a caça à sorte grande, pode ser que a
venda dele nos quiosques diminua os lucros do beco das Cancelas; mas o beco é
triste, não solta foguetes quando lhe saem prêmios, se é que lhe saem prêmios.
Os quiosques alegram-se quando os vendem, e é certo que os vendem em todas as
loterias.
Não obstante, lá vão os
quiosques embora. Assim foram as quitandeiras crioulas, as turcas e árabes, os
engraxadores de botas, uma porção de negócios da rua, que nos davam certa
feição de grande cidade levantina. (“A Semana”, Gazeta de Notícias,
16/4/1893)
Reformas, resistência às
Nenhuma reforma se fez útil e definitiva sem padecer primeiro as resistências da tradição, a coligação da rotina, da preguiça e da incapacidade. É o batismo das boas ideias; é ao mesmo tempo o seu purgatório. (“Notas Semanais”, O Cruzeiro, 9/6/1878)
Quiosque na Rua da Saúde (foto de Augusto Malta do início do século XX) |
Repressão aos camelôs
Mas vamos ao meu ofício,
que é contar semanas. Contarei a que ora acaba e foi mui triste. A desolação da
rua Primeiro de Março é um dos espetáculos mais sugestivos deste mundo. Já ali
não há turcas, ao pé das caixas de bugigangas; os engraxadores de sapatos com
as suas cadeiras de braços e os demais aparelhos desapareceram; não há sombra
de tabuleiro de quitanda, não há samburá de fruta. Nem ali nem alhures. Todos
os passeios das calçadas estão despejados delas. Foi o prefeito municipal que
mandou pôr toda essa gente fora do olho da rua, a pretexto de uma postura, que
se não cumprira. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 8/1/1893)
Romaria
Conversavam X e Z a
propósito da festa da Penha. Z perguntou donde vinha o uso da romaria.
O interrogado ia
justamente perguntar a mesma coisa, mas não hesitou em responder:
– É um uso romano. A
austera república tinha esses dias de festa, semelhantes às férias latinas, e
era então que todo o povo dava largas ao prazer. Pode-se dizer que nessas
ocasiões Roma ria. (“Badaladas”, Semana Ilustrada, 20/10/1872)
Século XX
Que inveja que tenho ao
cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século XX! Que belas
coisas que ele há de dizer, erguendo-se na ponta dos pés, para crescer com o
assunto, todo auroras e folhas verdes! Naturalmente maldirá o século XIX, com
as suas guerras e rebeliões, pampeiros e terremotos, anarquia e despotismo,
coisas que não trará consigo o século XX, um século que se respeitará, que
amará os homens, dando-lhes a paz, antes de tudo, e a ciência, que é ofício de
pacíficos. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 6/1/1895)
Senado
É tão bom ter uma cadeira no Senado! A gente faz o seu testamento, e ocupa o resto do tempo em precauções higiênicas, a bem de dilatar a vida e gozar por mais tempo das honrarias inerentes ao posto de príncipe do império. [No Império, o cargo de Senador era vitalício.] (“Comentários da Semana”, Diário do Rio de Janeiro, 10/11/1861)
Sol,
eclipse
Há hoje um eclipse do sol.
Está anunciado. Os astrônomos chegaram a esta perfeição de descrever
antecipadamente esta casta de fenômenos, com o minuto exato do princípio e do
fim, o primeiro e o último contato. Não há mais que aguardá-lo e mirá-lo, mais
ou menos, segundo ele for total ou parcial. E assim se vai o melhor da vida,
que é o inopinado. O incerto é o sal do espírito. Ah! bons tempos em que os
eclipses não andavam por almanaques, e queriam dizer alguma coisa, tais quais
os cometas, que eram um sinal da cólera dos deuses. (“A Semana”, Gazeta de
Notícias, 16/4/1893)
Sonho com a morte
Faleci ontem, pelas sete
horas da manhã. Já se entende que foi sonho; mas tão perfeita a sensação da
morte, a despegar-me da vida tão ao vivo o caminho do Céu, que posso dizer
haver tido um antegosto da bem-aventurança. Ia subindo, ouvia já os coros de
anjos, quando a própria figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha
uma ânfora nas mãos, onde espremera algumas dúzias de nuvens grossas, e
inclinava-a sobre esta cidade, sem esperar procissões que lhe pedissem chuva. A
sabedoria divina mostrava conhecer bem o que convinha ao Rio de Janeiro [...]
Alegrei-me com isto,
posto já não pertencesse à terra. Os meus patrícios iam ter um bom carnaval, —
velha festa, que está a fazer quarenta anos, se já os não fez. Nasceu um pouco
por decreto, para dar cabo do entrudo, costume velho, datado da colônia e vindo
da metrópole. [...]
Não obstante as festas
da Terra, ia eu subindo, subindo, até que cheguei à porta do Céu, onde São
Pedro parecia aguardar-me, cheio de riso.
— Guardaste para ti
tesouros no céu ou na terra? perguntou-me.
— Se crer em tesouros
escondidos na terra é o mesmo que escondê-los, confesso o meu pecado, porque
acredito nos que estão no morro do Castelo [...] [alusão a uma crença então
difundida em tesouros dos jesuítas enterrados no morro do Castelo, demolido na
década de 1920 sem que se encontrasse tesouro algum] (“A Semana”, Gazeta de
Notícias, 12/2/1893)
Suicídio
Segundo os cânones, o
suicídio é um atentado ao Criador, e o nosso primeiro e recente arcebispo
aproveitou o caso Mancinelli [um suicida] para lembrá-lo aos párocos e a todo o
clero, e consequentemente que os sufrágios eclesiásticos são negados aos que se
matam. A circular de D. João Esberard é sóbria, enérgica e verdadeira; recorda
que a sociedade civil e a filosofia condenam o suicídio, e que a natureza o
considera com horror. No mesmo dia da expedição da circular (quinta-feira) um
homem que padecia de moléstia dolorosa ou incurável, talvez uma e outra coisa,
recorreu à morte como a melhor das tisanas. Suponho que não terá lido a palavra
do prelado; mas outros suicidas virão depois dela, pois que os cânones são mais
antigos, a filosofia também, e mais que todos a natureza. (“A Semana”, Gazeta
de Notícias, 9/9/1894)
Telegrama, concisão do
O telégrafo é uma
invenção econômica, deve ser conciso e até obscuro. O estilo faz-se por extenso
em livros e papéis públicos, e às vezes nem aí. Mas nós amamos os ricos
vestuários do pensamento, e o telegrama vulgar é como a tanga, mais parece
despir que vestir. [Na era pré-Internet, o telegrama, cobrado por número de
palavras, tinha de ser conciso para não sair caro demais.] (“A Semana”, Gazeta
de Notícias, 13/9/1896)
Temporal
Refiro-me ao temporal, a
esse temporal único, assombroso, aterrador, que os velhos de oitenta anos viram
pela primeira vez, que os adolescentes de quinze anos esperam não ver segunda
vez no resto dos seus dias, a esse temporal, que, se durasse 2 horas, deixava a
nossa cidade reduzida a um montão de ruínas.
Durante uns dez minutos
tivemos, nós, os fluminenses, uma imagem do que seria o grande cataclismo que
extinguiu os primeiros homens. Rompeu-se uma catarata do céu; Éolo soltou os
seus tufões; o trovão rolou pelo espaço; e um dilúvio de pedras enormes começou
a cair sobre a cidade com a violência mais aterradora que se tem visto. (“Ao
Acaso”, Diário do Rio de Janeiro, 17/10/1864)
Tigre, venda de
Enfim! Os lobos dormem
com os cordeiros, e as linguiças andam atrás dos cães. São as notícias mais
frescas do dia.
Que os lobos dormem com
os cordeiros, basta ver o anúncio que anda nas folhas, um anúncio
extraordinário, pasmoso, um anúncio da Rua do Hospício [atual Rua Buenos
Aires]. Vende-se ali, está ali à espera de algum amador que o queira comprar,
não um chapéu ou um gato, não um jogo de cortinas, um armário, um livro, uma
comenda que seja, mas um (custa dizê-lo!) mais um (ânimo!) mas um (palavra, só
escrever o nome dá um arrepio pela espinha abaixo), mas um (vamos!) mas um
tigre.
Sim, senhores, vende-se
ali um tigre. (“Balas de Estalo”, Gazeta
de Notícias, 26/4/1884)
Caça ao tigre, gravura de Victor Adam (século XIX) |
Tiradentes, centenário da morte
Tivemos esta semana o centenário do grande mártir. A prisão do heróico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra coisa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas. A capital portou-se bem. Dos estados estão vindo boas notícias. O instinto popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração da glória. Merecem, decerto, a nossa estimação aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado, o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 24/4/1892)
Tiros da Revolta da Armada
Neste momento, sete horas da manhã, ouço uns tiros ao longe. São fortes, mas não sei se tão fortes como os de ontem, sexta-feira, à tarde, quando toda a gente correu às praias e aos morros. Nenhum deles, porém, vale o bombardeamento do princípio da semana, entre 2 horas e duas e meia, e mais tarde entre quatro e cinco. Eu, nessa noite, acordei assombrado. Sonhava, ah! se soubessem em que sonhava! Sonhava que dormia, e era despertado por umas cócegas na testa. Abri os olhos, dei com um raio da lua, que entrara pela janela aberta. E dizia-me o raio da lua: “Monta em mim, nobre mortal, anda fazer uma viagem pelo infinito acima.” (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 24/9/1893) [Machado de Assis tem um conto cujo personagem morre de uma bala perdida na Revolta da Armada: “Pílades e Orestes”.]
Tolerância, espírito de
A primeira vez que assisti a uma sessão do parlamento era bem criança. Recordo-me que ao ver um orador oposicionista, após meia hora de um discurso acerbo, inclinar-se sobre a cadeira do ministro, e rirem ambos, senti uma espécie de desencanto. Esfreguei os olhos; não lhes podia dar crédito. Era tão diferente a noção que eu tinha dos hábitos parlamentares! A reação veio, e então compreendi que a mais bela coisa das lutas partidárias é justamente a estima das pessoas, de envolta com as dissensões de princípios, espécie de tolerância que não conhecem ainda povoações rústicas. (“Notas Semanais”, O Cruzeiro, 9/6/1878)
Touradas
[Não pense que Machado
viajou até Madrid; na época, promoviam-se touradas no Rio de Janeiro]
O certo é que se eu
quiser dar uma descrição verídica da tourada de domingo passado, não poderei,
porque não a vi.
Não sei se já disse
alguma vez que prefiro comer o boi a vê-lo na praça.
Não sou homem de
touradas; e se é preciso dizer tudo, detesto-as. Um amigo costuma dizer-me:
– Mas já as viste?
– Nunca!
– E julgas do que nunca
viste?
Respondo a este amigo,
lógico mas inadvertido, que eu não preciso ver a guerra para detestá-la, que
nunca fui ao xilindró, e todavia não o estimo. Há coisas que se prejulgam, e as
touradas estão nesse caso. (“História de Quinze Dias”, Ilustração
Brasileira, 15/3/1877)
Vegetarianismo
Quando os jornais
anunciaram para o dia 1º deste mês uma parede de açougueiros, a sensação que
tive foi muito diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados;
eu agradeci o acontecimento ao Céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao
vegetarismo.
Não sei se sabem que eu
era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne,
mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e
organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde
para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a
arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que
respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um
pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.
Deus, ao contrário, é
vegetariano. (“A Semana”, Gazeta de Notícias, 5/3/1893)
Vermes do cemitério, conversa com os
Castro Malta? perguntaram-me os vermes.
– Sim, Castro Malta... Uns dizem que ele morreu, outros que não; afirma-se que está enterrado e desenterrado; que faleceu de uma doença, se não foi de outra. Então lembrou-me vir aqui ao cemitério a estas horas mortas, para interrogá-los e para que me digam francamente se ele aqui esteve ou está, e...
Os vermes riram às bandeiras despregadas; eu, menos vexado que medroso, pedi-lhes desculpa, declarando que só o amor da verdade me obrigava a fazer o que estava fazendo.
– Não pense que estamos mofando do senhor, respondeu um dos vermes mais graúdos. Castro Malta é o nome – do homem?
– Justamente. Onde está ele?
– Alas, poor Yorick! [citação da cena do cemitério em Hamlet] Não podemos saber nada; isto cá embaixo é tudo anônimo. Ninguém aqui se chama coisa nenhuma. César ou João Fernandes é para nós o mesmo jantar. Não estremeças de horror, meu filho. Castro Malta? Não temos matrículas nem pias de batismo. Pode ser que ele esteja por aí, pode ser também que não; mas lá jurar é que não juramos... [...] Não distinguimos nomes, nem caras, nem opiniões, quaisquer que sejam, políticas e não políticas. Olhe, vocês às vezes batem-se nas eleições e morrem alguns. Cá embaixo, como ninguém opina, limitam-se todos a ser igualmente devorados, e o sabor é o mesmo. Às vezes o liberal é melhor que o conservador; outras vezes é o contrário: questão de idade. Os vermes (não os deuses, como diziam os antigos) os vermes amam os que morrem moços. Você por que é que não fica hoje mesmo por aqui?
– Lisonjeiro! Não posso; tenho que fazer.
– Deixe-se de imposturas! [Castro Malta, vítima inocente de um rumoroso caso de violência policial, foi assassinado no cárcere. O cronista indaga os vermes do cemitério sobre seu paradeiro.] (“Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 12/12/1884)
Voto, pedido de
[Já em 1884, no tempo do Império, quando o voto para a Assembléia Geral era censitário (só votavam pessoas acima de certa renda) e as mulheres sequer tinham esse direito, Machado de Assis escreveu uma crônica – bem atual – satirizando os políticos pedindo votos.]
Venho pedir-lhe o seu voto na próxima eleição para deputado.
– Mas, com o senhor, fazem setenta e nove candidatos que...
– Perdão: oitenta. Que tem isto? A reforma eleitoral deu a cada eleitor toda a independência, e até fez com que adiantássemos um passo. [...]
– Bem; pede-me o voto.
– Sim, senhor.
– Responda-me primeiro. Que é que fazia até agora?
– Eu...?
– Sim, trabalhou com a palavra ou com a pena, esclareceu os seus concidadãos sobre as questões que lhe interessam, opôs-se aos desmandos, louvou os acertos...
– Perdão, eu...
– Diga.
– Eu não fiz nada disso. Não tenho que louvar nada, não sou louva-deus. Opor-me! É boa! Opor-me a quê? Nunca fiz oposição.
– Mas esclareceu...
– Nunca, senhor! Os lacaios é que esclarecem os patrões ou as visitas: não sou lacaio. Esclarecer! Olhe bem para mim.
– Mas, então, o que é que o senhor quer?
– Quero ser deputado.
– Para quê?
– Para ir à câmara falar contra o ministério.
– Ah! é contra o Dantas?
– Nem contra nem pró. Quem é o Dantas? eu sou contra o ministério... Digo-lhe mesmo que a minha ideia é ser ministro. Não imagina as cócegas com que fico em vendo um dos outros de ordenanças atrás... Só Deus sabe como fico!
– Mas já calculou, já pesou bem as dificuldades a que...
– O meu compadre Z... diz que não gasta muito.
– Não me refiro a isso; falo do diploma, o uso do diploma. Já pesou...
– Se já pesei? Eu não sou balança.
– Bem, já calculou...
– Calculista? Veja lá como fala. Não sou calculista, não quero tirar vantagens disto; graças a Deus para ir matando a fome ainda tenho, e possuo braços. Calculista!
– Homem, custa-me dizer o que quero. O que eu lhe pergunto é se, ao apresentar-se candidato, refletiu no que o diploma obriga ao eleito.
– Obriga a falar.
– Só falar?
– Falar e votar.
– Nada mais?
– Obriga também a passear, e depois torna-se a falar e votar. Para isto é que eu vinha pedir-lhe o voto, e espero não me falte.
– Estou pronto, se o senhor me tirar de uma dificuldade.
– Diga, diga.
– O X. pediu-me ontem a mesma coisa, e depois de ouvir as mesmas perguntas que lhe fiz, às quais respondeu do mesmo modo. São do mesmo partido, suponho!
– Nunca: o X. é um peralta.
– Diabo! Ele diz a mesma coisa do senhor. (“Balas de Estalo”, Gazeta de Notícias, 10/11/1884)
Xadrez [jogo de que Machado foi aficcionado]
[...] o xadrez, um jogo
delicioso, por Deus! imagem da anarquia, onde a rainha come o pião, o pião come
o bispo, o bispo come o cavalo, o cavalo come a rainha, e todos comem a todos.
Graciosa anarquia, tudo isso sem rodas que andem, nem urnas que falem! (“A
Semana”, Gazeta de Notícias, 25/2/1894)
Falta de sessões na Câmara devido à ausência do "corpo legislativo"
O carrancudo sol fechou o sobrecenho e, amuado, escondeu-se por detrás das nuvens, que não há mais vê-lo. O corpo legislativo (que é o nosso sol político) entendeu que devia fazer o mesmo. E, escondido embaixo dos lençóis, tem deixado desertas ambas as casas do parlamento. (“Novidades da Semana”, Semana Ilustrada, 1/5/1864)
Endividamento do governo versus falta de crédito para a pessoa física
O governo até parece que quanto mais lhe falta mais lhe dão, e, às vezes, em condições inesperadas, como o caso do nosso recente empréstimo. Quem é que me fia mais, desde outubro do ano passado, um jantarinho assim melhor? Seguramente ninguém, mas ao governo fiam tudo; deve muito e emprestam-lhe mais. Por isso, não admira que tanta gente queira ser governo. (“Bons Dias”, Gazeta de Notícias, 19/4/1888)
COLUNAS E RESPECTIVOS ÓRGÃOS DE IMPRENSA EM QUE MACHADO PUBLICOU SEUS FOLHETINS JORNALÍSTICOS (informações extraídas do magnífico DICIONÁRIO DE MACHADO DE ASSIS de Ubiratan Machado:
1) Aquarelas, em O Espelho (1859), assinando como M-as
2) Comentários da semana, no Diário do Rio de Janeiro (1861-62), assinando como Gil e M.A.
3) Crônica, em O Futuro (1862-63), assinada com o próprio nome.
4) Correspondência/Correspondência da Corte/Correspondência da Imprensa Acadêmica (a coluna foi mudando de nome), na Imprensa Acadêmica (1864/1868), assinando como Sileno.
5) Novidades da Semana/Pontos e Vírgulas/Badaladas (coluna coletiva que mudou de nome duas vezes), na Semana Ilustrada (1864-76), assinadas como Dr. Semana. Como vários escritores compartilharam o mesmo pseudônimo, diferentes especialistas divergem sobre quais seriam realmente de Machado.
6) Vespas Americanas, na Semana Ilustrada' (1864), assinadas como Gil. A coluna só saiu duas vezes.
7) Ao Acaso (Crônicas da Semana), no Diário do Rio de Janeiro (1864-65), assinando com o próprio nome ou suas iniciais.
8) Cartas Fluminenses, no Diário do Rio de Janeiro (1867), assinando como Job.
9) Correspondência da Corte (segunda fase), na Imprensa Acadêmica (1868), assinando como Glaucus.
10) História de Quinze Dias, Ilustração Brasileira (1876-78), assinadas como Manassés.
11) História de Trinta Dias, Ilustração Brasileira (1878, quando a revista se tornou mensal), assinadas como Manassés.
12) Notas Semanais, em O Cruzeiro (1878), assinadas como Eleazar.
13) Balas de Estalo, na Gazeta de Notícias (1883-86), a maioria assinada como Lélio. Diferentes cronistas alternavam-se na coluna, usando pseudônimos distintos.
14) A + B, na Gazeta de Notícias (1886), assinadas como João das Regras.
15) Gazeta de Holanda, na Gazeta de Notícias (1886-88), crônicas humorísticas assinadas como Malvólio.
16) Bons Dias!, na Gazeta de Notícias (1888-89), assinadas como Boas-Noites.
17) Bons Dias!, na Imprensa Fluminense (em número único deste jornal, de 20-21/5/1888, comemorando a libertação dos escravos), assinada como Boas -Noites.
18) A Semana, na Gazeta de Notícias (1892-1900). Publicada aos domingos sem assinatura. Em 28/2/1897 o autor se despede do leitor, mas escreve duas crônicas extras em 4-11/11/1900.
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