Conrad Detrez (1937-1985) foi um belga estudante de teologia em Louvain que, para escapar do serviço militar no Congo belga, em 1962 decidiu emigrar para o Brasil como missionário leigo. Lecionou francês na Universidade Santa Úrsula, ao mesmo tempo em que atuou nas favelas. Durante o regime militar, envolveu-se com atividades políticas ligadas aos meios católicos de esquerda (Ação Popular) e chegou a ser preso e expulso do país em 1967. Contou Detrez ao Jornal do Brasil: "Meu processo de expulsão foi arquivado, voltei à França e retornei a São Paulo em 1968 onde, até 1969, fui redator de política internacional. Com o crescimento da repressão, achei melhor sair do Brasil. Em 1971 fui condenado, à revelia, a dois anos de prisão" (edição de 7 de junho de 1980) Com a redemocratização, favorecido pela anistia, retornou por algumas semanas em 1980, visita essa que narra em seu livro Les noms de la tribu (Os nomes da tribo, sem tradução em português), do qual transcrevemos abaixo um trecho, traduzido para o português pelo editor deste blog.
Paróquia de Santa Cecília (1929 - Brás de Pina) no estilo das igrejinhas da Europa Central, como a de St. Cäcilia em Dauchingen, Alemanha. |
Ao pé desse montículo, na monotonia dos subúrbios, minha existência mudou. Nasci em 1937 na região de Liège. Uma segunda vida surgiu e subverteu a primeira, em 1963, no Rio de Janeiro. No primeiro período, fui um aldeão, de raça valã, religião católica e língua francesa. No segundo, torno-me suburbano, de filiação carioca, herege e de língua portuguesa. Em Brás de Pina vivi a perda da fé e o engajamento político. Lá também sofri a devastação do amor louco. O Brasil popular, mais africano do que europeu, contestador e despojado, subverteu-me profundamente. O povinho dos subúrbios do Rio me ensinou a vida, a política, o prazer: ele me libertou. O modesto bairro de Brás de Pina foi o local do novo parto. Essa obscura zona suburbana é minha Roma, meu Tombuctu, minha Havana. Foi lá que encontrei Beatriz e vivi com Fernando. Apeguei-me a ela como à minha aldeia. Gostaria de terminar lá meus dias.
Era domingo, um doce domingo de inverno austral, moderadamente ensolarado, modorrento. A parada de ônibus fica a dez minutos a pé da colina. Em quinze anos, o bairro não mudara nada. Eu revi os letreiros, os botecos, os casebres de outrora. Subi as escadas que conduzem à casinha que habitei, no alto da colina, à igrejinha azul celeste em seu topo. Uma vegetação extraordinária circundava a habitação e o santuário. Enormes tufos de bambu apontavam entre flamboyants, bosques de figueiras formavam, acima do caminho estreito que prolonga a escadaria, uma abóbada sob a qual avancei. Reconheci a casa, paredes desbotadas, mal conservada, que parecia servir agora de depósito. Encostei meus lábios sobre o reboco, amarelo e sujo, da fachada. Pela primeira vez após meu retorno ao Rio, as lágrimas me assomaram aos olhos.
Refleti por um longo momento, sentado na capela, acerca da passagem do tempo, as paixões que se extinguem, as metamorfoses da vida. Abandonei a colina e deixei para trás a casinha, os bambus, o santuário. Peguei de novo o ônibus que me levou ao centro da cidade, levemente melancólico, contente sem saber direito por que, e sonhador.
Eu ainda devaneava quando o veículo parou na Praça Tiradentes, ponto final das linhas do subúrbio. Um outro mundo, esta praça, uma outra história, uma outra geografia. Entre seu teatro João Caetano, seus botequins e gafieiras, seus cinemas porcos, seus petiscos e hotéis de má fama, uma fauna desclassificada e composta de todas as classes surge tão logo a noite cai. Em meio aos mendigos, aos paqueras, aos meninos vendedores de amendoins torradinhos, avaliam-se os travestis, os burgueses tornados vulgares, os gigolôs a dez centavos ou quinhentos cruzeiros, de acordo com a idade, o peso, as iscas. Ali se roçam as mulatas de aluguel, os encrenqueiros, os traficantes, os Don Juans de favela e veados ruidosos, exuberantes, envelhecidos, desdentados, vestindo às vezes em vez de blusas as cortinas de seus cortiços. Durante dois anos, atravessei diariamente este lugar. Vinha do meu subúrbio e tinha de baldear de ônibus para me dirigir àquela escola [Universidade Santa Úrsula] dos bairros elegantes onde dava cursos de francês a moças jovens bem nascidas, tediosas como as missas, em troca de um salário miserável mas católico. Ao pé da estátua de Tiradentes, que significa aquele que extrai dentes, herói da independência do país, aprendi mais sobre as classes sociais, sobre seus gostos secretos, seus desejos, do que em todos os tratados de sociologia, de antropologia, as crônicas e até os romances locais [na Praça Tiradentes situa-se a estátua de D. Pedro I].
Que fazem então essas mulheres em andrajos, essas crianças quase nuas e esses velhos, sentados em papelões, na rua da Carioca? A noite vem. Saio de uma livraria e topo com esses grupos humanos. As mães, muito jovens e já desgastadas por três ou quatro gravidezes, dão o seio a recém-nascidos ou distribuem tabefes. Outras mulheres insultam as pestinhas que escapam de seus golpes. Os termos mais grosseiros jorram. Os moleques lutam, as meninas enrolam o coque, bebês choram. E as velhas assistem, indiferentes, às brigas. Sentem frio. O tempo esfria. Elas se estendem e enrolam em velhos jornais. Os pedestres circulam, impassíveis, entre os corpos, os papelões. No largo, que também tem o nome da Carioca, reproduzem-se as mesmas cenas. Por toda parte mulheres esfarrapadas e sujas, truculentas, e por toda parte bandos de crianças descalças, vestidas com um simulacro de calça rígida de sujeira, muitas vezes rasgada. Toda essa gente é negra ou mestiça. Descem, com certeza, das favelas penduradas nos morros da cidade. Curiosamente, entre essa amostra da miséria local, não há homens. Recusam-se a se mostrar? Preferem ficar pelos botecos das favelas? Correm atrás de outras saias, mais limpas e menos esfarrapadas, vestindo corpos de pele mais clara? Um fato que se vê sempre, no Brasil, entre os mendigos, é dez vezes mais mulheres do que homens e cem vezes mais crianças. Aquelas que se acumulam, esta noite, no largo são talvez mães solteiras, uma condição grandemente compartilhada no subproletariado das cidades. Ou talvez seus maridos, após as terem engravidado várias vezes, simplesmente as abandonaram, o que é ainda mais comum. Assim prolifera, neste país, uma sub-humanidade. Um fato perturbador. Pergunta-se qual tipo de revolta poderá ser eficaz. O crime, o roubo, a revolução? Será o caso de acusar o próprio Deus, o Todo-Impotente? Por ora, procuro decifrar o que essa gente faz ali, enquanto, continuando a andar, observo outro grupo de miseráveis acocorado ao pé do rochedo sobre o qual se ergue a venerável igreja barroca e o convento de Santo Antônio. E de súbito compreendo. Amanhã, 13 de junho, é a festa do piedoso português que morreu em odor de santidade em Pádua. E, como todo ano, na aurora desse dia, os padres distribuirão aos pobres o pão. Os mais famintos vieram na frente. Eles se preparam para a vigília, assegurando assim alguma chance de arrebatar das mãos dos religiosos o seu quinhão.
"venerável igreja barroca e o convento de Santo Antônio" |
Nenhum comentário:
Postar um comentário