ENSEADA DE BOTAFOGO

ENSEADA DE BOTAFOGO
"Andar pelo Rio, seja com chuva ou sol abrasador, é sempre um prazer. Observar os recantos quase que escondidos é uma experiência indescritível, principalmente se tratando de uma grande cidade. Conheço várias do Brasil, mas nenhuma tem tanta beleza e tantos segredos a se revelarem a cada esquina com tanta história pra contar através da poesia das ruas!" (Charles Stone)

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA

VISTA DO TERRAÇO ITÁLIA
São Paulo, até 1910 era uma província tocada a burros. Os barões do café tinham seus casarões e o resto era pouco mais que uma grande vila. Em pouco mais de 100 anos passou a ser a maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo. É pouco tempo. O século XX, para São Paulo, foi o mais veloz e o mais audaz.” (Jane Darckê Avelar)

19.7.19

RARIDADE: TEXTO DE BALZAC SOBRE D. PEDRO II


D. Pedro II jovem, em foto de Harald Schultz

Existem escritores que florescem na juventude (alguns para viverem vidas breves, como os poetas românticos brasileiros), enquanto outros despontam na maturidade – caso do lusitano Saramago e do genial memorialista brasileiro Pedro Nava que publicou o primeiro volume de suas memórias aos 69 anos. E existem escritores que a gente gosta de ler na juventude, geralmente os românticos, que abordam os sentimentos elevados – Victor Hugo é um bom exemplo, aos 16, 17 anos cheguei a ler seu alentado Os Miseráveis em coisa de uma semana: vagabundo, passava o dia na praia lendo – enquanto outros escritores mais calcados na dura realidade requerem uma certa “maturidade” do leitor. É o caso de Balzac, que só agora, na casa dos sessenta anos, aprendi a realmente apreciar. Porque Balzac é um escritor por demais realista, e os jovens preferem sonhar. 

Mais realista do que os demais escritores ditos realistas, Tolstói, Dickens, o Machado da segunda fase. Não porque ele explore as realidades cruas do sexo, como fazem os autores naturalistas, e sim porque mostra a mesquinhez do espírito humano e a força do dinheiro. E se existem duas coisas que movem o mundo, são elas sexo & dinheiro. Não à toa Engels afirmou ter aprendido mais com Balzac sobre os pormenores econômicos do que com todos os historiadores, economistas e estatísticos.

Um fato sobre Balzac que muita gente ignora é que, conquanto imerso na Europa do século XIX, tinha uma ideia da existência do nosso Brasil. A palavra Brasil (pesquisei no meu ebook) é citada 22 vezes em sua Comédia Humana. É o país de origem do barão Montès de Montejanos em A prima Bete (J’aime le Brésil, c’est un pays chaud.), e foi lá que Maximiliano de Longueville enriqueceu, como lemos em O baile de Sceaux. Num momento de crise, Balzac chegou a cogitar em emigrar para cá, tanto é que escreveu para sua amada a condessa Hanska: “Creio que deixarei a França e irei levar meus ossos ao Brasil, num empreendimento louco e que escolhi justamente por causa da sua loucura.” 

Tudo isto é narrado na biografia de Balzac escrita por Paulo Rónai que abre a edição por ele organizada da Comédia Humana, até hoje um marco da tradução literária no Brasil. Outra informação interessante fornecida por Rónai é a existência de um artigo de Balzac sobre o imperador brasileiro D. Pedro II, publicado na revista Caricature de 23 de junho de 1831 sob o pseudônimo de Henry B. Em 7 de abril daquele mesmo ano, D. Pedro I abdicara a favor de seu filho e no dia 13 embarcara para a Europa. Esse artigo, descoberto e traduzido para o vernáculo por Victor Wittkowski, foi publicado no jornal Correio da Manhã de 9 de julho de 1944, depois no suplemento Letras e Artes de A Manhã, em 14/3/1948, para então cair no esquecimento. Estamos resgatando-o. As fotos do imperador foram obtidas na Hemeroteca Digital.

D. Pedro II, D. Teresa Cristina e comitiva nas pirâmides do Egito, foto de J. Pascal Sébah de 1871

DOM PEDRO II, por HONORÉ DE BALZAC

Há uma doença grave mais contagiosa do que a gripe e a cólera-morbus e que se alastra caprichosamente: é a cólera popular que impele as nações a derrubarem os reis, não porque os não queiram – como se há de viver sem eles? – mas apenas pelo gosto de os mudar, de ver caras novas, de saber ao certo quanto pesa uma majestade.

Um dia é o povo francês, original em tudo; depois o belga, o polaco e outros, aqui e acolá. Hoje, é o brasileiro. O povo do Brasil preza, venera o seu soberano que o lavou com o sabão da independência; não lhe quer, pois, nenhum mal. Mas o rei reinou; logo, passe-se a outro.

Como o primeiro homem duma nação passa por ser coisa rara, preciosa, o brasileiro escolheu acaso, para o reger, uma longa experiência, ou cãs veneráveis? Não. O brasileiro gosta de rir; em consequência, toma para imperador um cidadão de cinco anos: D. Pedro II d’Alcântara (João-Carlos-Leopoldo-Salvador-Bibiano-Francisco Xavier de Paula-Leocádio-Miguel-Gabriel-Rafael-Gonzaga.

O nome é um tanto extenso, em verdade. Nos dias dos “vivas”, tornar-se-á estafante. Grita-se menos; e pronto! Se o novo monarca não teve tempo de fazer bem ao seu povo, pelo menos ainda não mandou enforcar ninguém. É já um antecedente mui gracioso da sua parte.

D. Pedro II em trajes gaúchos, foto de Luiz Terragno de 1865

Compreende-se facilmente que, até agora, a carreira política desse jovem soberano seja muito limitada; dos feitos do seu reino temos conhecimento de um só. Ei-lo:

No dia em que a nação proclamou o seu capricho, o preceptor do jovem príncipe apressou-se a procurar o discípulo, para lhe anunciar a sua nova profissão. Encontrou-o num palacete, distante algumas milhas do Rio de Janeiro, no momento em que se dignara tomar ovos quentes e leite no seio da risonha natureza brasileira onde todo galho de árvore embala um macaco à guisa de pardal. Arrebatando o príncipe aos encantos da merenda e dos sajus [espécie de pequenos macacos], o preceptor comunicou-lhe que, desde duas horas, tudo nele era majestade da cabeça aos pés, e levou-o ao paço.

No caminho, o pedagogo julgou-se autorizado a recitar ao soberano máximas de moral e congratulações. Ia abrir a boca, quando um grosso pingo d'água o advertiu de que chovia. Em lugar de eloquência, o nosso magister tratou então de procurar um abrigo.

Dom Pedro II, mais lesto, chegou em breve a uma choça, a cuja porta bateu energicamente, como convém a um monarca sem guarda-chuva. Assomou então à janelinha uma velha brasileira de tez acobreada, sulcada de rugas – verdadeira cara de mau tempo – que perguntou quem lhe acordava assim o gato!

– Oh! Abra duma vez, bruxa! – respondeu cortesmente o fedelho. – Eu sou João-Carlos-Leopoldo-Salvador-Bibiano-Francisco Xavier de Paula-Leocádio-Miguel-Gabriel-Rafael-Gonzaga-Dom Ped...

– Misericórdia, Nossa Senhora! – atalhou a velha. – Então vá pedir pousada a outra parte. Na minha cozinha não há lugar para tanta gente.

E fechou a janela.


D. Pedro II em 1883. Foto de Joaquim Insley Pacheco


10.7.19

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Convento e Igreja de São Francisco em foto de cerca de 1862 de Militão Augusto de Azevedo. Desde sua aula inaugural, em 1 de março de 1828, o "curso jurídico", depois Academia de Direito e, a partir de 1854, Faculdade de Direito ocupou as dependências do antigo convento.


A faculdade em foto de Frédéric Manuel de 1906. Uma restauração em 1884 retirara do convento seu aspecto original da foto anterior, substituindo o beiral por uma platibanda, acrescentando um pórtico alto, além de outras modificações.

A FACULDADE DE DIREITO DA USP, NO LARGO DE SÃO FRANCISCO, CENTRO PAULISTANO, OFERECE VISITAS MONITORADAS NA ÚLTIMA SEXTA-FEIRA DE CADA MÊS ÀS 14H30. VOCÊ PODE AGENDAR PELO E-MAIL visitasfd@usp.br. FOTOS TIRADAS DURANTE UMA DESSAS VISITAS. 
TEXTO REPRODUZIDO DO FOLHETO DISTRIBUÍDO NA VISITA.

Durante a década de 1930, o antigo convento foi demolido para dar lugar ao edifício de feições monumentais, em estilo neocolonial, que conhecemos hoje como Prédio Histórico. Para uma aula sobre este e outros estilos arquitetônicos adotados no Brasil veja nossa postagem sobre a evolução da arquitetura carioca clicando aqui.

Criada em 11 de agosto de 1827, com a fundação dos primeiros cursos jurídicos do Brasil, a Faculdade de Direito de São Paulo veio responder aos anseios de consolidação da emancipação recém-conquistada pelo país. Sua finalidade inicial era formar governantes e administradores públicos que viriam estruturar e conduzir o país independente.

Vitral na escadaria mostrando a faculdade quando ainda ocupava o antigo convento.

A princípio, fora instalada nas dependências de um convento erigido no Largo de São Francisco durante o século XVII. A presença de uma biblioteca e de um rico acervo constituído ao longo de anos e anos pelos frades franciscanos foi determinante para que o local fosse escolhido para sediá-la. 

A faculdade abriga várias obras de arte, entre elas, quadros de ex-diretores. Neste vemos Herculano de Freitas, diretor de 1916-25.

Durante a década de 1930, no entanto, o antigo convento foi demolido para dar lugar ao edifício de feições monumentais que conhecemos hoje como Prédio Histórico. Projetado por Ricardo Severo, considerado o sucessor de Ramos de Azevedo, o novo edifício inaugurou o estilo neocolonial, que congregou a arquitetura moderna e elementos do barroco luso-brasileiro, preservando um pouco da tradição cultural presente no antigo convento. As obras só seriam concluídas na década de 1940.

A biblioteca. Os livros estão agrupados não por assuntos, mas por altura, sendo localizados por um sistema de indexação.


Observe que livros de diferentes assuntos, mas mesma altura, compartilham a estante.

A Faculdade de Direito de São Paulo foi a primeira a integrar a Universidade de São Paulo (USP) por ocasião de sua fundação em 1934.

Em 2002, todo o conjunto arquitetônico do Prédio Histórico foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat).

Salão Nobre


Sala da Congregação

Nesses quase dois séculos de história, a Faculdade de Direito legou ao país bem mais do que previa o seu propósito original.

Seus estudantes e egressos não apenas ajudaram a lançar as bases do Estado brasileiro e ocuparam postos de relevo nos quadros do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, tornando-se presidentes da República, governadores, prefeitos, deputados, senadores, ministros e juízes. Alguns deles foram protagonistas de importantes movimentos nacionais, como o abolicionismo, o republicanismo, o constitucionalismo e a campanha das Diretas Já. Entre eles, figuram nomes conhecidos da história nacional, como Prudente de Moraes, José Antonio Pimenta Bueno, José Bonifácio de Andrada e Silva (o Moço), Ruy Barbosa, Campos Sales, Ulysses Guimarães e Franco Montoro e muitos outros.

Sala da Congregação: reprodução do decreto criando os cursos jurídicos

Outros, alimentando o clima de efervescência cultural que a Faculdade de Direito instaurou em São Paulo, legaram ao país algumas das mais importantes obras da literatura brasileira. É o caso dos poetas Castro Alves, Fagundes Varella e Álvares de Azevedo, de Monteiro Lobato e, mais recentemente, de Lygia Fagundes Telles, alguns deles nomeados imortais pela Academia Brasileira de Letras.

Retratos dos ex-reitores

Não é por acaso que costuma-se dizer que a história da Faculdade de Direito se confunde com a história do país e de São Paulo.


Em suas dependências, distribuem-se registros de marcos e acontecimentos históricos de grande significado para a Faculdade e seus estudantes, como o túmulo do professor Julius Frank, construído em 1842, e a pedra fundamental do edifício para o qual seria transferido o curso de Direito na Cidade Universitária, arrancada de sua origem por estudantes contrários à transferência e instalada no Largo de São Francisco em 1973 com os dizeres "Quantas pedras forem colocadas, tantas arrancaremos".


Túmulo do professor Julius Frank

Mas a Faculdade de Direito abriga também monumentos que registram e homenageiam momentos decisivos da história nacional, como o Monumento ao Soldado Constitucionalista e a Tribuna Livre, de onde o inesquecível mestre Goffredo da Silva Telles Jr. pronunciou sua Carta aos Brasileiros e defendeu a democracia em plena ditadura militar.

Retrato de Frei Galvão no local onde, segundo a tradição,  estaria situada a sua cela no convento. Nesse mesmo local existe uma relíquia do santo.

Que essas Arcadas continuem a sustentar sonhos, ideais e lutas da nação brasileira por muitos outros séculos!


As famosas arcadas

Memorial aos acadêmicos mortos na Revolução Constitucionalista: "Quando se sente bater / No peito heroica pancada / Deixa-se a folha dobrada / Enquanto se vai morrer..."

24.6.19

CENTRO CULTURAL SÃO PAULO



O Centro Cultural São Paulo é ao mesmo tempo uma pujante obra de arquitetura e paisagismo & magnífico espaço de convivência e lazer cultural. Com estrutura de concreto e aço, segue à risca três dos cinco princípios da “nova arquitetura” enunciados por Le Corbusier. Primeiro, planta livre, independente da estrutura do prédio, permitindo a livre alocação das paredes. Na prática, significa um espaço interno não compartimentalizado como num prédio convencional. Você tem amplos espaços sem divisórias, permitindo uma circulação quase tão livre como se estivesse ao ar livre. Segundo princípio, fachada livre, igualmente independente da estrutura do prédio, proporcionando abertura máxima. E, terceiro, o “terraço jardim”: belíssimo jardim suspenso – pairando acima das pessoas, da biblioteca, da gibiteca, das exposições, do café, do cinema, do teatro... – com horta e tudo, cercado de prédios por todos os lados como não podia deixar de ser em São Paulo. Um oásis na metrópole, a “praia” do paulistano. A entrada é gratuita e o centro fica colado numa estação de metrô (Vergueiro).

Jardim Suspenso, cercado de prédios por todos os lados

Cinema em Transe

Escada para o Jardim Suspenso

Expressão corporal

Em sua dissertação de mestrado TRÊS CENTROS CULTURAIS NA CIDADE DE SÃO PAULO, Roberto Cenni conta que “O vale do rio Itororó teve sua ocupação iniciada com fazendas, quilombos, locais de açoites de escravos e pequenas chácaras, sendo posteriormente aberta a avenida 23 de Maio. Na encosta do vale havia casas de grandes quintais, com frente para a rua Vergueiro, em cujo leito subterrâneo foi construído o metrô. Na administração de Miguel Colassuono surgiu o Projeto Vergueiro (julho de 1973), uma tentativa de reurbanização da área resultante das desapropriações efetuadas pela Companhia do Metropolitano de São Paulo para a construção de sua linha norte-sul. Contando com uma área de 300.000 metros quadrados, o terreno apresentava um grande desnível entre a rua Vergueiro e a avenida 23 de Maio e, segundo o projeto da EMURB - Empresa Municipal de Urbanização, ali seriam construídos um complexo de torres de escritórios, hotéis e um shopping-center, sendo o espaço restante destinado à construção de uma gigantesca biblioteca pública municipal e de alguns prédios comerciais.”

Juventude no CCSP

Arquitetura de amplos espaços, sem divisórias

Pichação (artística?)

Eva, escultura de mármore de Victor Brecheret de 1920

Dois anos depois o prefeito Olavo Setúbal substituiu o projeto Vergueiro original por outro, mais voltado para a cultura, que na administração seguinte, de Reinaldo de Barros, foi enfim reformulado em um centro cultural multidisciplinar, “apoiando-se em duas justificativas básicas, a localização privilegiada e as enormes proporções de um edifício que, se destinado apenas à função de biblioteca, teria excessiva capacidade ociosa”. Ainda segundo a tese de Cenni, “O projeto do CCSP, realizado pelo escritório do arquiteto Eurico Prado Lopes e tendo como co-autor Luiz Benedito Castro Telles, resultou num prédio baixo, que explora a imensidão dos espaços longitudinais em seus quatro pavimentos, os quais se adequaram exatamente à forma de talude do terreno que caracteriza a topografia da região. O conjunto massivo de concreto e aço acaba por se assemelhar, de acordo com alguns observadores, a um portentoso porta-aviões.”

Série Guerrilheiras do fotógrafo Marcos Cimardi

Rafael Vilarouca, Sala de Estar

São Paulo ontem e hoje: encontro da Rua José Bonifácio com Rua de São Francisco.

Céu paulistano

Num domingo de outono, ao travar conhecimento com o Centro Cultural São Paulo, o que vejo? Jovens e mais jovens estudando, com cadernos, calculadoras, livros, e uma galera menos jovem jogando xadrez. No jardim, gente civilizadamente lendo, conversando, refletindo, namorando. Após um trimestre (iniciado em 15 de março de 2019) morando em São Paulo, enfim percebi a diferença cultural entre São Paulo e Rio. Onde no Rio você vai encontrar, em pleno domingo ensolarado, uma única pessoa que seja, num local público, estudando? Vamos e venhamos, o carioca é mais chegado a uma praia, um samba, uma cerveja, um som alto. Assim como Roma difere de Milão e Munique difere de Berlim, Sampa, conquanto próximo, difere do Rio. São culturas e formações e histórias bem diferentes. A diversidade brasileira, salve, salve.

Mosaico: arara

14.6.19

DOMINGOU NO IBIRA, de MÁRIO VIANA

CRÔNICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA VEJA SP DE 31 DE AGOSTO DE 2018. FOTOS DO EDITOR DO BLOG.

Começo pedindo desculpas aos fãs da Paulista Aberta — eu, entre eles —, mas a verdadeira cara de São Paulo se mostra todo domingo no Parque Ibirapuera. Vem gente de todo canto, figuras de todo tipo, com a certeza de que serão bem recebidas nas alamedas lotadas de bikes, cães, atletas e preguiçosos.

Não há modelitos a seguir, o à-vontade impera. Lá estamos entre feios e bonitos, gordos e magros, casais gays e crianças barulhentas, gringos e nativos. Tem de tudo, como sempre acontece em São Paulo.

Inaugurados em 1954, os 158 hectares do Parque Ibirapuera parecem insuficientes para receber todo mundo que cruza seus portões aos domingos. Só em 2017, foram 14 milhões de visitantes, um número que seguramente nem passava pela cabeça do então prefeito da cidade, José Pires do Rio, quando, nos anos 1920, ele chegou a ventilar a ideia de criar um espaço nos moldes dos parques europeus na área antigamente ocupada por uma tribo indígena. A ideia afundou nas partes alagadiças da região.

Foi só em 1927 que a coisa começou a pegar. Um funcionário da prefeitura chamado Manequinho Lopes — o que dá nome ao viveiro — passou a plantar eucaliptos na região, para “chupar” a água. Resumindo a ópera: a ideia ressurgiu e, quando a cidade comemorava seu quarto centenário, foi inaugurado o parque que conhecemos hoje.

Tenho certeza de que nenhum dos barulhentos skatistas que se exibem em manobras, às vezes geniais, outras vezes amadoras, sabe dessa história. Os casais de namorados, que embaralham pernas, braços e bocas nos gramados, também não pensam nisso. O que importa para eles é ter um espaço amplo e que possa ser chamado de seu, mesmo que por alguns breves rodopios e amassos.

A cidade respira e desfila no parque. Há quem vá para visitar os ótimos museus — o de Arte Moderna e o Afro Brasil, sempre com mostras atraentes, e o de Arte Contemporânea, que ocupa o antigo prédio do Detran, já fora do Ibira. Aliás, é do terraço dele que se tem uma vista linda do parque, vale a visita. Outros vão paquerar, fazer piquenique ou só bater perna.

Entre cerejeiras em flor e sabiás saltitantes, tudo é bacana e, ao mesmo tempo, caótico no domingão do Ibira. Outro dia — um domingo, claro —, encontrei a amiga Carla Jimenez, sentada extasiada diante do lago. “Como é bom ficar contemplando”, disse ela, que tinha ido a pé da Pompeia até lá. “A gente, às vezes, esquece de curtir a cidade.”

É claro que o domingo no parque não é uma amostra do paraíso. Se fosse, nem seria São Paulo. Tem banheiro cheio, faltam opções de lanche, alguns ciclistas acreditam que estão disputando medalha de ouro numa prova olímpica e de vez em quando dá trabalho convencer o dono daquele bloodhound de que seu pet é enorme e não merecia ser batizado de Pipoca.

O encontro e a convivência de universos tão disparatados é que dão o tom ao domingão. É a “cota de natureza”, que saboreamos antes de voltar à rotina dos ônibus lotados, trânsito lento e contas a pagar. O sabiá que saltitava poucos parágrafos acima continuará cantando em nossa memória por mais alguns dias, até que chegue outro domingo.



9.5.19

SÃO PAULO, O RESUMO DO MUNDO, de JANE DARCKÊ AVELAR

Paulistana de Perdizes, Jane Darckê Avelar optou por morar no Rio por amor a esta cidade-irmã. Texto escrito especialmente para este blog.

"uma cidade imensa e assustadora"

O ano? Começo do século XX... Foi aí que tudo começou. Nossa semente, que veio nos corpos dos que um dia iriam se encontrar e se unir, sementes da terra e do além-mar, dormia tranquila à luz dos lampiões da Av. São João. Uma coruja fortuita olhava por entre as chaminés das fábricas, antevendo lojas se abrindo e o guinchar dos bondes, previa o sol, que não demoraria a dissipar o nevoeiro das frias madrugadas. Se ela tivesse uma bola de cristal, veria através dela, o futuro: uma cidade imensa e assustadora, onde tudo seria possível e ao mesmo tempo lhe pareceria impossível haver um lugar assim. Mas era só uma coruja. Uuuu... Uuuu... bateu asas, voou.



Jazigo no Cemitério da Consolação: "Pousou num cemitério"

Pousou num cemitério, onde a vida parecia ainda mais obscura e misteriosa. Sim, vida. Ali repousavam os corpos do que prepararam o caminho para as futuras gerações, dos que sonharam, ousaram, realizaram, se tornaram quase imortais, e por isso viviam ainda, nos patrimônios construídos, nos bustos de bronze aqui e ali, na memória da geração anterior. Uuu... Uuu... Voou de novo...


E pousou no alto do sobrado. Ah, o sobrado... suas telhas tão acolhedoras, quanto a própria cidade parecia ser aos humanos que já se agitavam, se preparavam para mais um dia... dormir não era para os humanos de São Paulo. Dormir era um luxo supremo, que servia apenas para descansar o corpo, porque a alma, ah a alma, voava ainda mais alto que a coruja.

Ouviu o rodar de uma carroça de leite e viu os pássaros acordando lentamente, e um pardal lhe avisou que o sol não tardaria. E se recolheu. 

Estátua do Pequeno Jornaleiro na Rua Sete de Setembro, Rio de Janeiro

Então o pardal passou voando perto do garoto de calças curtas que andava apressado, para pegar os primeiros jornais e levá-los até a Estação da Luz, para vendê-los. Anunciaria as manchetes do jornal do dia, como quem anuncia a evolução dos tempos. O menino jornaleiro e o pardal olhavam as muitas pessoas que passavam apressadas, sem notarem que a flor se abriu, as frutas estão quase maduras na árvore da praça, e... Oh! Um bonde atropelou um transeunte! Que desastre! Esta cidade está caótica! 

Mas mal sabiam que muitos mais estavam morrendo nas trincheiras do Vale do Paraíba, em nome de São Paulo, em nome da Constituição.


O menino jornaleiro, de repente, se viu diante do prelo de um jornal que levava o nome da cidade e do estado, não mais de calças curtas, mas de avental, manuseando os jornais, vendo o avanço de Hitler sobre a Europa, e pagando uma fortuna por um pão para levar para sua casa, na Bela Vista. Tudo controlado por racionamento, um futuro tão incerto. Tempos sombrios... Se ele voltasse a ser um menino, pensava, certamente teria medo da cidade, tão moderna, se enchendo de arranha-céus medonhos e temíveis, pessoas que nem dão mais um bom dia ao que passa ao seu lado, que não têm tempo a perder com sentimentalismos e trivialidades. Então ele se refugiava no circo, nos cinemas, nos campos de futebol. E eis que já quase se aposentando, rodando seus últimos jornais da manhã, lia a estranha notícia da mudança da capital do país. Será que São Paulo continuará a crescer? – pensou. Será que meus filhos e netos verão dias de progresso, como nos filmes americanos e seu way of life, ou saberão o que são as chagas vermelhas que a foice e o martelo provocam? Seremos homogeneizados pelo capitalismo, ou massacrados pelo comunismo? E São Paulo foi tomado pelos militares, que chegavam em caminhões, muitos mais do que seria de se imaginar. 

Bombas estavam sendo lançadas nas ruas, cavalaria, prisões, professores perseguidos, estudantes desaparecidos, trabalhadores em greve, São Paulo parecia estar se acabando. Sim, era o fim da cidade em que nasceu.

Mas São Paulo é como a Fênix. Rapidamente começaram a chegar famílias do norte, buracos e mais buracos pela cidade, mais caos, mais arranha-céus, mais carros, mais gente, mais casas, mais ônibus (ué! cadê os bondes?), mais comércio, mais indústrias, mais e mais e mais. Metrô! Shopping! Refugiados! Anistia! Eleições Diretas...

"meditavam nos templos budistas"

O menino dos jornais era um senhor idoso, e as memórias se misturavam dentro dele, como a história de São Paulo se misturava intrinsecamente à memória do país, enquanto tomava um café, recostado na poltrona do terraço, olhando o céu cor de rosa, numa tarde de outono... Seus filhos e netos desfrutavam de vários países, viajavam pelo mundo sem sair do lugar... Moravam na Itália da Bela vista, iam à Espanha do Cambuci, frequentavam as missas portuguesas da Vila Maria, compravam roupas ocidentais na Israel do Bom Retiro, se deliciavam e compravam variedades no Oriente Médio do Parque Dom Pedro II, meditavam nos templos budistas no Japão da Liberdade, e tantas outras coisas de tantos outros países, dentro da cidade, que fazia o que podia, através de um esforço comunitário, para oferecer o de melhor, para todos, sem distinção. Uma cidade que “amanhecia trabalhando, que não parava de crescer, como dizia a canção”, e que, ao mesmo tempo, sabia o que é “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como dizia outra canção. 

Fechou os olhos, e o menino de calças curtas, com os jornais debaixo do braço, saiu feliz para as ruas de paralelepípedos, tomando cuidado com os bondes, gritando as manchetes do dia... 


— Vô, preciso fazer uma crônica de São Paulo, para a faculdade... você me ajuda?

— Eu nasci aqui. Eu amo São Paulo. Eu vi esta cidade crescer, e como era linda... como é linda... como me orgulho de dizer que sou paulistano...

Cristo

— Mas vô, como o senhor pode amar este caos, este barulho e esta poluição? Essa gente que nem dá bom dia, que pára com qualquer chuvinha, com qualquer acidente? O senhor não pode amar uma cidade que só tem fila e mais fila, que mói a gente de tanto estresse, que é tudo tão caro, que não tem mar! Não tem Cristo, nem Bondinho, nem Maracanã... São Paulo é o túmulo do Samba, já disse Vinicius de Moraes e ainda por cima, o Carnaval não se compara ao meu Rio querido!

— Mas eu amo... sabe, meu bem, esta cidade é um caleidoscópio. A gente olha, tá de um jeito. Olha de novo, tudo mudou. Esse é o encanto dela. E as cores, as formas, o cheiro, uma força mística e terrena... uma metamorfose sem fim... até o clima mudou!

— Me conta, vô... como era, quando o senhor era um menino...

— Eu morava no Brás. E vendia jornais. E pelos jornais, acompanhei tudo que de melhor e de pior aconteceu nesta cidade. E vivi o bastante para estar aqui, agora, te contando estas coisas... Foi assim: No começo, foi Anchieta, os Bandeirantes e a gente nem sabia o que era dinheiro. Tudo era na base da troca. Daqui partiam as expedições para o interior dos sertões intocados. A Igreja Católica mandava em tudo, sabia de tudo, registrava tudo o que podia. 

— Mas o senhor nem era nascido nessa época!

Hospedaria dos Imigrantes em 1920. Hoje abriga o Museu da Imigração. 

— Ué! Você não quer falar de São Paulo, de como nós somos e porque somos? Somos quatrocentões dos brasões enferrujados! Somos migrantes, emigrantes e imigrantes foragidos, somos endinheirados que investimos nesta Terra Nova, somos escravos libertos, somos o resumo do mundo. O Resumo do mundo...

— Vô... que bom título vou dar à minha crônica... São Paulo, o Resumo do mundo!

"mais casas"