Afonso Arinos de Melo Franco foi uma notável figura humana, que herdou do pai e avô o pendor para a atuação política, tendo sido um dos fundadores da UDN; jurista autor de importantes obras de Direito; advogado do Banco do Brasil, emprego do qual foi exonerado por ordem direta do ditador Getúlio Vargas por ter sido idealizador e um dos signatários do Manifesto dos Mineiros pró-restauração da democracia; profundo conhecedor da história econômica, política e cultural brasileira, sobre a qual legou diversos livros, entre eles O índio brasileiro e a Revolução Francesa, apontando a influência do indígena brasileiro sobre a crença, propugnada por Rousseau, na bondade natural do homem, crença esta subjacente à ideologia da Revolução Francesa; crítico literário; jornalista; tradutor; intransigente democrata mesmo quando o Brasil, o mundo e os intelectuais se deixavam seduzir pelo canto da sereia das ideias totalitárias de direita ou esquerda – e o próprio ditador brasileiro e seus acólitos inclinavam-se a favor da aparentemente imbatível Alemanha, no início da grande conflagração mundial; autor de cinco magníficos livros de memórias, que o inscrevem no rol dos eminentes memorialistas brasileiros, como Pedro Nava, Antonio Carlos Villaça, Alberto da Costa e Silva e Gilberto Amado.
No primeiro desses cinco livros, A alma do tempo, escrito entre 16 de outubro de 1959 e o dia de Natal de 1960 – onde mescla observações sobre a atualidade que está vivendo com reminiscências, em ordem cronológica (exceto um ou outro salto temporal) de sua vida desde o nascimento e infância até a eleição para deputado após a queda do ditador Getúlio a fim de “representar o povo mineiro na casa do povo brasileiro” – dedica alguns parágrafos ao Rio de Janeiro que, se não foi sua cidade natal, já que Afonso Arinos nasceu em Belo Horizonte, foi uma das cidades de seu coração, junto com Roma e Ouro Preto, estas duas tendo merecido obras suas, respectivamente, Amor a Roma e Roteiro lírico de Ouro Preto. Reproduzimos aqui o trecho sobre a Cidade Maravilhosa escrito em 18 de julho de 1960, extraído das páginas 373-4 da recente edição da Topbooks, em capa dura, que reúne seus cinco livros de memórias.
Andando a pé, sozinho, pelas avenidas ajardinadas do centro [de Goiânia],
eu pensava na frase de Joaquim Nabuco, de que preferia uma curva da Via Ápia ao
contorno da baía de Guanabara [ver nota 1 no final]. Eu, também, não consigo me adaptar a uma
paisagem destituída de cultura, ou de história, como Goiânia ou Brasília.
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Convento da Ajuda, demolido em 1911, para dar lugar à atual Cinelândia. Hoje o convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda se situa na Praça Barão de Drummond, Vila Isabel. Foto de Augusto Malta de 1905. Observe a Igreja da Glória no canto superior direito. |
Preferia, sinceramente, viver em Ouro Preto do que na nova capital da
República. Não direi o mesmo que Nabuco, quanto ao Rio de Janeiro, porque esta
grande e querida cidade, além de centro cultural do país, é, também, dos seus primeiros cenários históricos.
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Morro do Castelo, demolido na década de 1920, dando lugar à atual Esplanada do Castelo. Ver postagem neste blog sobre esse histórico morro, clicando em "Morro do Castelo" no menu da barra vertical direita. Foto de Juan Gutierrez de cerca de 1894. |
No livro de Pigafetta (a referência feita de
memória) se vê que, já em 1519, na passagem de Fernão de Magalhães, muito antes
da fundação oficial por Estácio de Sá, havia traços da permanência do homem
branco à beira da Guanabara [ver nota 2]. Mas, ainda que consideremos o Rio a partir dos
jovem e heroico capitão morto em sua defesa, o certo é que a sua história se
conta por quatro séculos, o que é muito, para qualquer cidade do Novo Mundo.
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"Construções coladas à Candelária". Foto de Augusto Malta. |
Apesar das enormes transformações que sofreu na sua fisionomia, e da
destruição da maior parte dos testemunhos materiais da sua gloriosa e combativa
existência, o Rio, para quem lhe conhece a formação e o desenvolvimento,
oferece ainda numerosos pontos de enternecida contemplação.
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Igreja de São Pedro dos Clérigos, demolida para a abertura da Avenida Presidente Vargas. Foto de Marc Ferrez de cerca de 1890. |
Quando circulo a pé ou de automóvel pelas suas ruas, recomponho mentalmente a sucessão de episódios de transcorridos na Colônia, no Império e na República, à vista de tantas igrejas e conventos, de fortalezas e quartéis, de palácios e construções civis. Os próprios sítios onde nada mais resta do passado prestam-se à evocação do que foram em tempos idos, cenários de episódios capitais da nossa vida antiga, quando não simples visões da cidade familiar da minha infância.
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Palacete Abrantes. Foto de Augusto Malta. |
Na
Praça Floriano recordo os muros altos que circundavam o terreno do demolido
convento da Ajuda [ver foto]; na Esplanada revejo o Morro do Castelo, os seus barrancos
avermelhados e ladeiras tortuosas; no grande espaço da Avenida
Presidente Vargas, reponho, num fácil esforço de memória, as construções coladas
à Candelária, os sobrados coloniais da rua de São Pedro, a preciosa igrejinha
do mesmo nome [Igreja de São Pedro dos Clérigos], as carroças de burros encostadas no Largo do Capim (chamado,
depois, se não me engano, praça Lopes Trovão).
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Pavilhão das Regatas em Botafogo. O esporte era tão popular que um clube hoje eminentemente futebolístico, fundado na época, recebeu o nome de Clube de Regatas do Flamengo. Foto de Marc Ferrez de 1905. Ao fundo o Corcovado. |
No Flamengo, pelas ruas Senador Vergueiro e Marquês de Abrantes, a casa nobre deste estadista [Palacete Abrantes], com a sua capela ao lado, propriedade que pertencera a d. João VI; a maravilhosa chácara do Marquês de Herval, esplêndido espécime de arquitetura imperial que eu, aluno do D. Pedro II, já admirava, enternecido, quando passava, de bonde, para o internato, e outros imponentes casarões de sacadas de ferro e cantaria lavrada, como os de Miguel Couto, dos Rodrigues Alves ou dos conde de Figueiredo.
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Pavilhão Mourisco na ponta da Praia de Botafogo. Foto de autor anônimo de cerca de 1910. As fotos desta postagem foram obtidas no site Brasiliana Fotográfica. |
Em Botafogo, o pavilhão catita das regatas (“Botafogo é uma festa de regatas retas”, disse o poeta Austen Amaro) ou a ingênua fantasia do Pavilhão Mourisco; em Copacabana, as casas de fundos voltados para o mar, os terrenos baldios, cheios de pitangueiras, os lampiões a gás, os bondes pachorrentos, as crianças brincando em amplos jardins gradeados...
NOTAS:
1. A frase de Joaquim Nabuco, de seu Minha formação, é: As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica
ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Ápia, uma volta da
estrada de Salermo a Amalfi, um pedaço do Cais do Sena à sombra do velho
Louvre.
2. O italiano Antonio Pigafetta acompanhou a viagem de circunavegação de Fernão de Magalhães, sendo um dos seus dezoito sobreviventes e tendo escrito um relato precioso sobre as peripécias daquele périplo, cuja tradução em português, A primeira viagem ao redor do mundo, foi publicada recentemente pela editora L&PM. A menção aos “traços da permanência do homem branco à beira da Guanabara” ocorre quando o autor se refere a Giovan Carvajo (Juan Carvalhos) “nostro piloto, che quattro anni era stato
in questo paese”, “nosso piloto que permaneceu quatro anos nesta região”, a saber, o porto que adentraram no dia de Santa Luzia, 13 de dezembro de 1519, onde mais tarde se fundaria a cidade do Rio de Janeiro.
Como sempre, MUITO bom.
ResponderExcluirAbraço.
Apareça
Francisco