DICAS

10.1.20

OS CORTIÇOS COLONIAIS E AS VILAS INTIMISTAS DO ECLETISMO, de MILTON TEIXEIRA

Cortiço do final do século XIX no Morro do Livramento, uma "avenida" como diziam na época, e o mais incrível é que as casas não estão adulteradas. A porta de arco abatido em granito, no primeiro plano, é mais velha.

As raízes das vilas urbanas do final do século XIX podem ser encontradas no seu antepassado colonial mal comportado: o cortiço. Surgiram tais habitações coletivas ainda no século XVIII, parece-nos, derivadas das estalagens onde pernoitavam os tropeiros que chegavam de Minas Gerais. Seu número se multiplicou no século XIX, principalmente depois de 1850, quando ocorreu grande migração para a área urbana do Rio de Janeiro.

O cortiço era, antes de qualquer coisa, uma habitação particular coletiva para pobres, ex-escravos, imigrantes ou viajantes. Era erguido por vezes num simples lote urbano, onde caberia normalmente uma casa comum. Na testada urbana do lote, era levantada uma a duas casas de sobrado, onde, numa delas, por vezes, morava o dono do cortiço. No térreo funcionava um comércio, padaria, açougue ou armazém, que ajudava o estabelecimento a suprir-se de gêneros de primeira necessidade. Ao lado ou entre os dois sobrados, havia a entrada de uma pequena ruela, chamada, por eufemismo, de “avenida”. De ambos os lados da avenida, existiam pequenos cubículos constituídos por um único ambiente, com porta e janela. Nos fundos da avenida, tanques para lavagem de roupa, coradouros, pias e latrinas coletivas, de uso restrito da população do cortiço.

Cortiço na rua Bento Ribeiro, perto da Central

Alguns cortiços possuíam dois andares, sendo a ascensão aos cubículos superiores feito por escadas que davam acesso a uma varanda coletiva. Sobre as portas, às vezes existia uma bandeira gradeada para ventilação. Os cubículos eram numerados, invariavelmente, em algarismos romanos. Na entrada, à guisa de lavabo, existia uma pia para os visitantes lavarem as mãos. A intimidade familiar inexistia e realmente eram habitações muito insalubres com as latrinas usadas por todos, moços e velhos, homens e mulheres. Hoje restam na cidade apenas seis deles, sendo três na rua Senador Pompeu e dois na rua Sacadura Cabral – curiosamente hoje todos tombados pela Municipalidade como importantes bens culturais da cidade.

Depois de 1850 começou lentamente uma migração constante de europeus para o Rio de Janeiro, bem como, em sentido inverso, de ex-escravos do campo para a cidade. Com as latrinas coletivas, os cortiços logo foram culpabilizados pelas epidemias infecto-contagiosas que desde essa época atingiram a cidade na época do verão. Desde 1870 surgiram leis restritivas à sua construção na área urbana da cidade, mas seu número só fez crescer até os primeiros anos da República, quando os primeiros prefeitos lhe dedicaram uma guerra sem trégua. O maior cortiço de todos, era o “Cabeça de Porco”. Ficava na base do morro do Livramento, onde hoje está o túnel João Ricardo, próximo à Central do Brasil. Seu nome, dizia-se, derivava de um porco de louça usado como enfeite sobre a entrada principal. Moravam nele cerca de 4.000 pessoas e possuía mais de vinte casas comerciais. Foi destruído em fins de janeiro de 1893 por uma tropa de cavalaria chefiada pelo Prefeito Barata Ribeiro, que enfrentou forte oposição de deputados que defendiam os donos de cortiço, dentre elas, Dona Felicidade Perpétua de Jesus, proprietária majoritária do “Cabeça de Porco” e de outros cortiços na região portuária.

Antiga vila operária da Fábrica Aliança na Rua Pires de Almeida, Cosme Velho. 

Em fins de 1902, o Prefeito Francisco Pereira Passos, coadjuvado por seu Diretor da Saúde Pública, Oswaldo Cruz, desenvolveu sistemática oposição a essas habitações populares, tendo destruído a maioria delas. Os restantes foram abaixo nas administrações que se sucederam até 1930. O último cortiço foi construído em 1917, na rua Senador Pompeu. Foi o derradeiro Moicano. Conta-se que chegaram a existir mais de trezentos somente na área Central, mas os havia desde a Glória ao Humaitá, sendo que em Botafogo (Rua Assunção) ficava o que inspirou ao escritor Aluísio Azevedo o seu famoso livro.

As vilas surgiram no ocaso dos cortiços. Em 1888, com a Lei Áurea, ocorreu uma grande migração de ex-escravos para a Côrte. Isso estimulou os determinados investidores, principalmente ingleses, em aproveitar essa mão de obra disponível e barata, que se juntava agora às dos imigrantes europeus para investir no mercado fabril do Rio de Janeiro. Nos últimos anos do século XIX surgiram então várias fábricas de tecidos pela cidade, das zonas Sul a Oeste, que absorveu essa oferta barata. Surgiram, assim, em rápida sucessão: a Progresso Industrial, em Bangu; a Aurora, no Humaitá; a Corcovado, na Lagoa; a Carioca, no Jardim Botânico; a São Félix, na Gávea; a Aliança, em Laranjeiras; a Confiança, em Vila Isabel, e muitas outras, têxteis ou não. Como o Governo não se interessava pela construção de casas populares, os empresários tiveram de fazê-las. Pegaram alguma experiência das vilas operárias europeias, bem como a algo da realidade luso-brasileira dos cortiços.

Remanescente da antiga vila operária da Fábrica Bangu

As primeiras vilas operárias eram bem diferentes dos velhos cortiços. Todas as unidades eram compostas de, no mínimo sala, quarto, cozinha, coradouro e banheiro. Ainda eram geminadas, como nos cortiços e, assim como estes, o acesso era feito por uma única via, usança que permitia melhor controle sobre a entrada e saída dos empregados. Na entrada da “avenida”, casas altas para os supervisores. Algumas dessas vilas eram imensas, em especial a da Fábrica Bangu, que possuía igreja, escolas para os dois sexos, posto médico, mercado e clube desportivo, além de um teatro. A Fábrica Corcovado possuía cerca de treze mil operários e podia contar até com um hospital, igreja Católica e templo Metodista. A família era amparada por quatro planos previdenciários e a vila contava com infraestrutura de cidade. A vila da Fábrica Carioca, na rua Pacheco Leão, era motivo de orgulho nacional, projetada segundo os preceitos modernos de higiene, com clubes, escolas, mercados e bandas de música. Para o operário usufruir disso era-lhe feito pequeno desconto na folha de pagamento. Mas, se embebedasse, chegasse tarde à casa ou pior, organizasse greves ou delas participasse, era demitido e toda a sua família perdia a moradia e benefícios.

Para fugir a esse controle, muitos operários desistiam de morar na vila da fábrica. Colocavam toda a família para trabalhar e, com uma renda melhor, podia então alugar uma casa de vila particular, onde o controle patronal era menor. Essas vilas particulares seguiram o padrão dos cortiços coloniais. O dono era normalmente um português. Uma a duas casas grandes marcava a entrada, onde no térreo funcionava um comércio; o acesso era pela “avenida”, mas as semelhanças acabavam aí. As casas ainda eram geminadas, mas agora todas possuíam banheiro e área de serviços individualizados.

Cortiço num velho sobrado na Rua Costa Ferreira, 70 (Centro) tombado pelo município. Com dois pavimentos, é uma habitação coletiva característica da segunda metade do século XIX.

Um dos maiores defensores das vilas operárias foi o construtor Antônio Januzzi. Nascido em Cosenza, Itália; trabalhou na construção civil de seu país como autodidata, tendo apenas algumas aulas de desenho. Migrou em 1881 para Buenos Aires, onde trabalhou numa pedreira. Em 1885 embarcou num mercante como clandestino para o Rio de Janeiro, onde arrumou trabalho na construção do elevador a vapor para Santa Teresa, obra inaugurada em 1886. Reconhecido o seu talento, ganhou muitos admiradores e montou a maior empresa de construções da cidade, onde fazia do projeto à construção. Dotado de talento nato, chegou a ganhar encomendas oficiais e não foi à toa que construiu mais de trinta prédios somente na Avenida Central em 1904/05. Era dono do morro da Viúva, no Flamengo, onde fornecia pedra para todas as obras da cidade. Sua amizade com Pereira Passos rendeu-lhe bons contratos.

Januzzi era presbiteriano e considerava a missão de construir para os pobres uma cruzada religiosa. Para ele, a casa era o tijolo da família e esta o alicerce da sociedade. Era propugnador da ideia da construção de casas dignas para os operários e chegou a escrever um livro sobre o assunto, e a fundar uma empresa apenas para construção de vilas particulares: a Evonéas Fluminense. Januzzi começou construindo as vilas da Fábrica Carioca, ainda existente. Aproveitou a baixa dos preços dos terrenos no Humaitá, Botafogo, Catete, Laranjeiras, Vila Isabel e São Cristóvão para comprar velhos palacetes da época da escravidão, demoli-los e, em seu lugar, construir pequenas vilas. Trabalhou muito para os maiores donos de vilas do Rio de Janeiro: Conde Modesto Leal, Luís Camuirano, Antônio Valentim do Nascimento, Conde São Salvador de Matosinhos, Visconde de Santa Isabel e Visconde de Moraes. Para estes nababos de além-mar, ergueu dúzias de vilas por todos os bairros da cidade, sendo algumas delas tão grandes que deram origem a ruas, como a Camuirano, a Muniz Barreto, e a Barão de Itambi.

Cortiço na Rua Senador Pompeu, 34. Tombado pela Prefeitura.  O cortiço de dois pavimentos foi construído, no final do século XIX, para atender a população de baixa renda.

Com o passar dos anos, morar em vila deixou de ser coisa de operário para se transformar num estilo de vida. As vilas evoluíram e passaram a ficar mais luxuosas, bem acabadas e com detalhes primorosos de arte, serralheria, estuque, etc. Algumas passaram a ter nomes altivos ou a se chamar bairros, como São Jorge, no Catete. Das melhores vilas da década de 20, estão as: Vila Abrunhosa, na rua da Passagem e os Apartamentos George, na rua São Clemente, ambas em Botafogo. Esta última parece um vilarejo inglês, projetada e construída por Eduardo Pederneiras, o maior sucessor de Januzzi (falecido em 1949) na construção civil no Rio de Janeiro.

Em 1931 Getúlio Vargas literalmente decretou o fim das vilas. Agora as casas operárias passariam a ser construídas pelo Estado e não mais por particulares. No mesmo ano ele criou o Instituto Nacional de Previdência e seis Institutos de Aposentadorias e Pensões, autarquias que possuíam,  dentre outras funções -, a missão de construir casas populares para o povo – IAPI, IAPC, IAPB, IAPM, IAPTEC, etc. Logo depois o mesmo presidente congelou os aluguéis, tirando o motivo maior de existência das vilas: o pequeno aluguel que gerava a renda mensal que permitia a vida confortável dos donos de vilas lusitanos. Isso desestimulou também a iniciativa particular de construí-las, pois as casas eram já alugadas por muito baixo preço. Muitas vilas foram então vendidas e algumas até demolidas. Agora os donos dos terrenos mudaram a orientação, passando a erguer pequenos prédios residenciais multifamiliares de até cinco andares, sem elevadores, com um ou mais apartamentos por andar. Eram as famosas “Casas de Apartamentos”, cuja moda perdurou até o fim da Segunda Guerra Mundial, até que a especulação imobiliária também as desbancou e fez surgir o prédio de apartamentos moderno.

Revalorizadas no final do século XX, as vilas foram tombadas como patrimônio urbano e se converteram em opção elegante de moradia. Descobriu-se que com apenas uma pequena grade na entrada, consegue-se fácil a segurança necessária. A casa de vila, mesmo com a intimidade um tanto comprometida, voltou a ser uma rara oportunidade de residir numa residência unifamiliar individualizada em meio ao caos em que se converteu a maioria dos bairros residenciais da cidade.

Pequena Itália (Vila Operária Sauer da Fábrica Carioca) no Jardim Botânico

Texto gentilmente cedido pelo professor Milton Teixeira. Fotos do editor do blog.

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