Texto de Zuenir Ventura publicado originalmente no encarte "Aniversário do Rio" de O Globo de 1o de março de 2013 e reproduzido com a gentil permissão do autor.
Aconteceu neste verão. Convidado a escrever sobre um canto
do Rio, escolhi o Arpoador, porque de lá se costuma desfrutar deslumbrantes
entardeceres. Os termômetros marcavam quase 40º, com a sensação térmica
beirando os 50º. Sentado nas pedras, apreciava o sol refletir com tal
intensidade sobre o mar espelhado que devo ter experimentado aquela ilusão
ótica que no deserto se chama miragem. A gente entra num clima onírico e
acredita ver o que não existe. De repente, senti uma urgência febril de dividir
aquele espetáculo mágico com alguns personagens que cantaram e encantaram o
Rio. A primeira aparição foi de Millôr, que veio correndo pela areia, como
sempre fazia. Passou pelo largo que agora leva o seu nome, subiu até onde eu
estava e repetiu uma de suas geniais definições: “O pôr do sol é de quem olha”.
Em seguida, foi a vez de Tom e Vinicius, que atravessaram o Parque Garota de
Ipanema carregando o violão. Tinham acabado de acordar, após uma longa noite de
boemia. Finalmente, vindo de Copacabana, chegou Oscar Niemeyer, trazendo nos
olhos as curvas das mulheres e dos morros cariocas com que fez sua arquitetura.
Como não podia deixar de ser, a conversa girou em torno
dessa cidade solar, sensual, exibida que nasceu para ser musa. Falou-se
principalmente do narcisismo de quem desde pequena se habituou aos elogios. Era
ainda uma criança quando um de seus adoradores, o primeiro governador-geral
Tomé de Souza, se desmanchou: “Tudo é graça o que dela se pode dizer”. Alguém
lembrou que até os religiosos lançaram sobre ela olhares profanos: “É a mais
airosa e amena baía que há em todo o Brasil”, suspirou o padre Anchieta,
inteiramente catequizado. Seu colega da Companhia de Jesus, o padre Fernão
Cardim, sentiu o mesmo: “É coisa fermosíssima e a mais aprazível que há em todo
o Brasil”.
Estimulado pela exuberância sensorial daquela tarde, resolvi
corrigir Vinicius, que dizia que ser carioca é um estado de espírito. Acho que
é mais. Não se trata apenas de alma, mas de corpo e alma. Ama-se a cidade com
todos os sentidos, a começar pelos olhos. Olha que coisa mais linda uma garota
de Ipanema a caminho do mar. Ela vai se molhar e se estender nas areias para
dourar seu copo quase nu. Segundo Tom, que transformou em música tudo isso,
esse rito hedonista, quase erótico, é uma herança de nossos antepassados
tamoios, que nos ensinaram a curtir a água, o corpo, a música e a dança.
O sol já estava sendo rendido no seu plantão diário, e os
banhistas noturnos começavam a estender suas cangas na areia para o mais novo
modismo deste verão: o banho de lua. Foi quando chegou Cazuza para fazer parte
do show. Antes de dar um mergulho, cantou: “Vago na lua deserta das pedras do
Arpoador”.
Nunca me senti tão tamoio quanto nesse fim de tarde, início
de noite nas pedras mágicas do Arpoador.
Belíssimo!
ResponderExcluirCaro amigo,
ResponderExcluirgostei tanto que postei um link no caderneta de armazém