DICAS

15.7.17

NILTON BRAVO (1937-2005), O MICHELANGELO DOS BOTEQUINS


Painéis de Nilton Bravo tombados pela Prefeitura no Bar Sulista, na Praça Coronel Assunção, 357 (Gamboa)

Nilton Bravo (1937-2005), pintor de linha acadêmica, sobretudo de naturezas mortas, conhecido como o “Michelangelo dos Botequins” (ou, segundo Carlos Heitor Cony, “o Rubem Braga da paleta, o Vinicius de Moraes do pincel”, como veremos na crônica adiante), começou a pintar ainda criança e logo se associou ao pai Lino Pinto Bravo (1899-1966), que se assinava Bravo Filho, “o pintor de botequins”, os dois passando a pintar a quatro mãos e assinando Nilton Bravo & pai. Sem nenhuma formação acadêmica, aprendeu com o pai  as técnicas de pintura.

Pintou mais de 2 mil painéis em botequins e outros estabelecimentos Rio de Janeiro afora, principalmente nos subúrbios, Centro e Zona Portuária. “Quando Pelé fez o milésimo gol eu já tinha pintado mais de 1300 painéis” (Nilton Bravo em O Globo, Jornal do Bairro: Meier, 31/5/1989) Em 1986, o Prefeito Saturnino Braga decidiu tombar seus painéis a óleo, mas pouco se fez de concreto, e na prática apenas as pinturas do Bar Sulista, na Rua Coronel Assunção, 357 (Gamboa - fotos acima), estão hoje tombadas. 

Com a modernização dos botequins e colocação de revestimentos de parede modernos (azulejos grandes), boa parte da obra da dinastia Bravo – iniciada pelo avô Manoel Pinto Bravo, que decorava tetos e paredes de residências e igrejas  se perdeu, e o que resta está em mau estado, com exceção dos dois painéis tombados (fotos acima), daqueles dos bares Brasília (Cachambi) e Tempero do Nordeste (Bairro de Fátima, embora com algumas partes descascadas - ver foto abaixo) e de alguns estabelecimentos mais “gentrificados”, com maior consciência do valor dessas obras, que as conservam até como chamariz, a exemplo do Jobi no Leblon, Adega Flor de Coimbra na Lapa, o tradicional Adegão Português em São Cristóvão e o Pirajá em São Paulo. 

Na década de 1980 Nilton Bravo deixou de pintar painéis para se dedicar às telas, expostas em galerias de arte, gozando de relativo sucesso e certa visibilidade na imprensa (foi em edições de O Globo da época que extraí as informações desta “biografia”). Ocupou a cadeira 40 da Academia Brasileira de Belas Artes. Seu último painel de botequim, no Belmonte de Copacabana, pintou-o no ano de sua morte, mas infelizmente em setembro de 2015 constatei que havia sido removido. Atualmente o maior pesquisador da obra remanescente de Bravo é Evandro Von Sydow Domingues, que se dedica a percorrer bares Rio afora na tentativa de localizá-los. O resultado de suas investigações encontra-se em seu blog A Vida Numa Goa e seu inventário mais recente das obras de Bravo (6/6/15) pode ser consultado aqui.


Adega Flor de Coimbra (Lapa)

Trecho da crônica "O Miguel Ângelo dos Botequins" de Carlos Heitor Cony publicada na Folha de São Paulo de 4/9/1998 (para ler a crônica inteira clique aqui):

"Não faz muito, grande parte dos bares, botequins e padarias do Rio eram decorados por um pintor chamado Nilton Bravo. Em termos de comunicação, era na época o artista mais consumido do Brasil.

Suas paisagens podiam ser admiradas por milhares de pessoas, todos os dias. Segundo os donos dos botequins, os quadros de Nilton Bravo ajudavam o varejo: olhando a paisagem bucólica e plácida, o freguês sentia vontade de comer outro sanduíche e beber mais um chope.

Herdeiro de nobre tradição pictórica, ele repetia Miguel Ângelo passando a vida pendurado em andaimes, cobrindo paredes com cores e formas. O botequim era a sua Capela Sistina. Em vez do papa, quem lhe dava ordens era o dono do bar: "Bota um barquinho ali naquele canto". Ele botava.

Trabalhando a metro quadrado, seus quadros pregavam a doçura das tardes, a quietude das águas. Por sua ternura, era o Rubem Braga da paleta, o Vinícius de Moraes do pincel.

Não havia carioca que não tivesse visto um quadro de Nilton Bravo. Suas paisagens eram, em essência, as mesmas: um rio cortando duas margens floridas, uma casinha rústica com a fumaça saindo pela chaminé, um céu azul bordado de nuvens diáfanas."


Belmonte de Copacabana, o último painel de Bravo, especialmente encomendado, infelizmente já removido

"Nilton Bravo", crônica de Nelson Motta no Caderno B do Jornal do Brasil de 20-7-67:

Seu estilo é inconfundível e sua obra espalha-se pela Cidade inteira.
Entre os cariocas, seus painéis são mais conhecidos do que qualquer quadro de Picasso ou Van Gogh.

Quase todo mundo já viu um painel seu, mas, provavelmente, muito poucos prestaram atenção à pintura para não deixar esfriar o cafezinho.

Sim, é ele mesmo — Nilton Bravo — o pintor que decorou a grande maioria dos bares e botequins do Rio com seus painéis, onde o motivo é sempre ligado à atividade ou localização do bar.

Autor de mais de 2000 trabalhos, a princípio em sociedade com seu pai — também Nilton Bravo [na verdade o pai de Nilton Bravo chama-se Lino Pinto Bravo Filho e o avô, nascido na Itália, Manoel Pinto Bravo] —, é um autodidata, que aprendeu na prática a resolver os problemas de decoração das paredes dos bares do Rio.

Praia de Copacabana, Corcovado, Pão de Açúcar e Aterro da Glória são alguns dos seus temas preferidos; no entanto, apenas sugere ao dono do bar a paisagem que deve ser pintada.

São conhecidíssimos seus painéis numa sinuca do Posto Seis e no bar em frente ao Jóquei, onde naturalmente o assunto é corrida de cavalos.

Embora em estilo acadêmico, os painéis de Nilton Bravo despertam grande interesse entre os artistas pop do Rio como Rubens Gerchman e Carlos Vergara. Antônio Dias sabe inclusive “onde estão os melhores Bravo da praça, de determinada fase”.

Rubens Gerchman, recentemente premiado no Salão de Arte Moderna com dois anos de estudos em Paris, dá seu depoimento:

“O grande mecenas de hoje é o pequeno comerciante, dono do bar da esquina, quase sempre português.

Para um dono de bar é uma vergonha que suas paredes não possuam pelo menos uma pintura decorando o ambiente.

O mais conhecido de todos os pintores de bar é Nilton Bravo, que a princípio assinava Bravo & Filho, depois Bravo & Pai e atualmente apenas Nilton Bravo.

Assinatura

Outro dia — diz ainda Gerchman — conversando com meu amigo, o também pintor Paulo Guilherme Sami, achamos interessante criar uma firma de pintura de bar. O nome escolhido foi Pinbar e o logotipo que desenhamos foi uma palheta de pintor com seus respectivos pincéis e o telefone, como Nilton Bravo.

Nossa primeira encomenda — contou Gerchman — foi em uma padaria de Nova Iguaçu e, conversando com o proprietário, passamos a entender a psicologia prática do dono de bar, pois nos foi encomendada, para o balcão de bebidas, uma paisagem de mar (que motiva a sede) e do lado da padaria uma vista da Cidade (que dá ideia de atividade e desperta a fome).”

O traço fino, a integração de paisagens e cenas, os detalhes (Nilton ama os detalhes) dos ramos de árvores sempre tocando de leve as águas de alguma lagoa onde pode estar-se banhando uma jovem índia com o Pão de Açúcar ao fundo ou o Monumento aos Mortos da II Guerra. Estes são alguns elementos que permitirão a você identificar imediatamente, e sem erro, qualquer painel para, esquecendo um pouco o cafezinho, dizer com absoluta certeza: “Trata-se de um Bravo autêntico.”




Painel de Nilton Bravo do Bar Brasília, também conhecido como Bar da Margarida (Cachambi). No início de 2021 fiquei sabendo pelo amigo Salomão Rovedo que o bar virou uma casa de materiais de construção e as paredes foram repintadas, destruindo o painel.

NILTON BRAVO NA LITERATURA:

A única menção à obra de Bravo na literatura que conheço é na pág. 211 do romance A última adolescência do autor contemporâneo Helio Brasil, que se notabiliza por fixar a memória de seu bairro natal São Cristóvão, como você pode conferir no verbete que lhe dedica a Wikipedia. Só que ele grafou o nome do pintor erroneamente. Aqui está o trecho:

A garotada contemplava de longe, apreciando os painéis greco-romanos de Newton [Nilton] Bravo, um contraste imprevisto entre o lirismo de paisagens floridas e o fumo que empestava o ambiente de mistura com o odor de café – sempre fresco – e a carne assada feitos pelas duas mulheres que se ocupavam da cozinha. Aquele era um lugar para gente grande, tanto mais que nos fundos, separadas por painéis de vidro e madeira, portas vai-e-vem, havia duas sólidas mesas Brunswick, eternamente cercadas pelos bambas do taco. Ali esbarravam-se, sem ousar beligerância, detetives e batedores de carteira, bookmakers e seus ansiosos fregueses, acompanhando os páreos gritados pelo rádio na voz de Teófilo de Vasconcelos, ou torcedores fanáticos acompanhando as proezas de Ademir, Zizinho, Danilo e Pedro Amorim nas dramáticas recriações de Ary Barroso. Em um ou outro canto, indiferentes a tudo, os adeptos do carteado, preparando-se para as rodadas noturnas de pôquer.


Painel de Nilton Bravo no Jobi, Leblon (detalhe) 

Painel de Bravo no Bar Tempero do Nordeste, Bairro de Fátima: em cima, o painel inteiro, bem comprido, com algumas partes descascadas; embaixo, dois detalhes, um da esquerda e outro do centro. Esse painel bem que merecia ser tombado e restaurado pela Prefeitura.

Alguns dos painéis de Bravo estão em mau estado de conservação, descoloridos, como este no Café e Bar Costa do Minho, em frente ao antigo Zoológico em Vila Isabel


Duas pinturas de Nilton Bravo estão muito bem conservadas no Adegão Português, no Campo de São Cristóvão, uma delas mostrada nesta foto que obtive no site desse restaurante (já que me falta bala na agulha para poder frequentá-lo). Segundo um dos proprietários (JB de 13/12/83), na reforma do restaurante de 1980 essas pinturas seriam cobertas com "tinta ou um revestimento qualquer, porque já tinham saído da moda e estavam até rachadas. Mas, quando souberam da nossa intenção, algumas velhinhas que costumavam almoçar aqui em grupo fizeram um abaixo-assinado e entregaram ao nosso arquiteto, com o argumento de que estaríamos contribuindo para a extinção da cultura popular".  As pinturas foram então restauradas e mantidas, podendo ser contempladas até hoje. 

PS. Em 12/11/2018 leio no site do jornal Extra que oito painéis remanescentes de Lino e Nilton Bravo foram "provisoriamente tombados", não sei por que provisoriamente. São eles:

1- Pintura a óleo instalada no estabelecimento comercial “Café e Bar Rio - Brasília”, situado na Rua Cachambi 365, Cachambi.

2- Pintura a óleo instalada no estabelecimento comercial “Café e Bar Flor de Coimbra”, situado na Rua Teotônio Regadas 34, Lapa.

3- Pintura a óleo instalada no estabelecimento comercial “Bar Jobi”, situado na Av. Ataulfo de Paiva 1166 lj B, Leblon.

4- Pintura a óleo instalada no estabelecimento comercial “Bar Ponto da Galera”, situado na Rua Tadeu Kosciusko 58, Bairro de Fátima.

5- Pintura a óleo instalada no estabelecimento comercial “Bar Costa do Minho”, situado na Rua Visconde de Santa Isabel 261, Grajaú.

6- Pintura a óleo instalada no estabelecimento comercial “Bar Gurilandia”, situado na Rua Conde de Bonfim 670, Tijuca.

7- Pintura a óleo instalada no estabelecimento comercial “Lanchonete Rosa do Bairro”, situado na Rua General Argolo 230, Vasco da Gama.


8- Pintura a óleo instalada no estabelecimento comercial “Açougue e Distribuidor de Carnes Frigobar”, situado na Rua Riachuelo 207, Lapa.

3 comentários:

  1. Ivo:
    Minha gratidão por estar citado no seu irresistível BLOG.
    Que bela ideia de recuperar a imagem e as imagens daqueles artistas populares.
    É pena que boa parte dos cariocas (existem, ainda? Nobres Honorários existem muitos, para nossa alegria!!) não conheça aqueles trabalhos. Uma exposição fotográfica seria oportuna e sua "máquina" poderia estar a postos, profissionalmente claro!
    Mais um gol de placa!
    Helio Brasil

    ResponderExcluir
  2. Ivo, em relação ao tombamento "provisório" dos painéis dos Bravo, o processo provisório é o recurso imediato de tombamento. Face a tanta burocracia,
    é melhor propor tombamento imediato neste caso onde a pesquisa sobre a obra já está consistente. De qualquer forma, o processo não para por aí, ele retorna para o órgão para providenciar o tombamento definitivo. Assim talvez possa-se incluir novas obras, como a de uma igreja no Andaraí que talvez tenha. O Castelinho Santa Marcelina já está com o processo adiantado também.

    ResponderExcluir
  3. Em relação à presença do Bravo na literatura brasileira, encontrei referências explícitas (ou quase) em Victor Giudice e Antonio Callado. Sobre a deste último fiz recentemente postagem no blog.

    Saudações

    ResponderExcluir