Crônica "Os Sertanejos" de Coelho Neto na edição de 29-30 de outubro de 1908 de A Notícia. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil. |
Crônica publicada na página 3 da edição de A Notícia de 29-30 de outubro de 1908 (pesquisada na Biblioteca Nacional e aqui transcrita na ortografia original). A crônica conta a história de um grupo de artistas sertanejos contratados para se apresentarem na Exposição Nacional daquele ano, mas que, assustados com a modernidade da metrópole, não conseguem repetir ali os mesmos cantos e danças em que são exímios no seu ambiente natural, o plácido sertão, e acabam por decepcionar o público. Afinal, conclui o autor, “almas não são batatas que se exibam em exposições, a alma só se expande livre e espontaneamente”. A aplicação do termo “Cidade Maravilhosa” à Exposição, comum na imprensa da época, gerou o mito de que foi Coelho Neto quem cunhou esse epíteto para o Rio de Janeiro, o que a leitura da crônica desmente. Em 10 de janeiro de 1927 Coelho Neto publicou na pág. 8 do Jornal do Brasil uma versão bastante modificada desta crônica, onde a Exposição dá lugar a um cinema, e, aí sim, a Cidade Maravilhosa se aplica ao Rio, mas àquela altura o epíteto já tinha se consagrado, como você pode conferir aqui.
Chegaram em turma,
contractados para cantar e dansar no recinto da Exposição. Gente escolhida! Os
homens, guapos, destorcidos, como por lá dizem; as raparigas, lindas, de voz
suave e d’uma graça languida no boliar do corpo, mas, depois de um ensaio
canhestro, o emprezario, esticando desanimadamente o beiço, antevendo, sem
duvida, o fiasco, devolveu-os ao sertão com os seus trajos pittorescos e todo o
instrumental languoroso com que se alegram as noites lindas das suaves campinas
sertanejas.
Foi um desapontamento,
disseram me.
Os pobresinhos, tão airosos
nos seus pagos, perderam de todo o garbo, desaprumaram-se logo ao deixarem a
estação de desembarque e os primeiros passos com que pisaram o asphalto não
seriam mais medrosos e incertos se fossem dados em desfiladeiro de má fama, por
entre cruzes, em noite negra e aziaga de agosto.
Lividos, d’olhos esgazeados,
achegavam-se uns aos outros, com o terror presago com que se apinham as ovelhas
em marcha para o matadouro.
“Ó famanaz [que tem muita fama] da serra, que é da
tua arrogancia! Trazes a viola á
bandoleira e caminhas d’olhos baixos, tu, o mais atrevido cantador da serra,
dono de tantos corações, vencedor em tantos desafios... Eh! valentaço, que é da
tua grimpa [orgulho]?
E tu, moça do collo timido
["tumido" na versão de 1927], musa morena das floralias serranas, tu,
que tem [corrigido para "tens" na versão de 1927] sido a deusa da
discordia, accendendo rancores com a luz dos olhos negros e despertando a sêde
do sangue com a cor da bocca mais cheirosa do que uma baunilha; moça da serra,
porque vais tão triste e com os quadris tão quietos, tu que tão bem os cirandas
quando, na ponta do pésinho arisco, saltas, ao som da viola, requebrada e
risonha, desfiando a fieira.
Moça cheia de graça, que é da
côr das tuas faces, que é do teu dengue, que é da tua alma, feita de volupia ?
Estas vozes interrogativas
soavam á passagem melancolica da tribu. Pobre gente ! O mar largo, sereno e
azul, dobando as suas ondas caireladas [=debruadas] de espumas, conteve a
pequena grey. Quedaram os homens estarrecidos, as moças persignaram-se
procurando, com dedos tremulos, no papo da camisa, as contas do rosario bento.
Diz a história de Xenophonte
que os gregos, livres de Tissaphernes e da gente perfida e bravia das rechans
asiaticas, ao avistarem o mar lustroso, lançaram por terra escudos e sarissas
e, prostrando-se de joelhos, com lagrimas pela face, saudaram movidamente o
mar, a estrada verde que os devia levar, em rumo facil, aos suaves vergeis da
Patria desejada.
Sim, mas os gregos eram de
origem pelasgica, filhos do mar, e os sertanejos... vinham das campinas
ramilhetadas de montas [na versão de 1927 corrigido para “moutas”, ou seja,
“moitas”]; vinham das florestas floridas, vinham dos valles avelludados, longe
dos littoraes arenosos onde o mar se espreguiça. Acompanhando, com
desconfiança, o movimento das ondas, carregavam o cenho, communicando-se
suspeitas, e as moças, em voz sumida, juntando as cabeças em colloquio, diziam
pasmadas: “Que mundo d'água, Virgem do Ceu!”
Depois do mar, a cidade
formidavel, a cidade devoradora d’homens, com as avenidas largas, margeadas de
palacios colossaes, com o mover incessante de uma multidão apressada, com o
reboliço vertiginoso dos vehiculos, com a zoeira dos automoveis, com o troar
dos pregões, com todo esse confuso movimento que é a vida, desde o passo
subtil, despercebido de um mendigo andrajoso que se esgueira, ao longo dos
muros, resmungando lamurias, até a estropeada heroica de um regimento com a
bandeira desfraldada ao vento, as armas lampejando ao sol e os clarins resoando
em notas marciaes.
Pobre gente da tranquillidade
! E a tribu lá foi airadamente a seu destino.
Ao entrar na Exposição, na
avenida dos palacios brancos, o pasmo subio de ponto.
Uma das moças, aduncando os
dedos, puxou a companheira pelo chale e segredou-lhe:
— Assumpta, Clodina: não
parece qu'a gente tá vendo uma cidade encantada como aquellas das história?
— É mêmo.
— Oia bem.
— É tal e qual. Parece qu'eu
tou uvindo nhá Nica.
— Quem sabe, Clodina !...
— U quê ?
— Quem sabe se aquelle home
que foi buscá a gente lá em riba não é mandado...
— Cruz! Crédo! Mecê não
trouxe reza ?
— Eu trouxe os meus breves e
uma reliquia da Santa Cruz. Mas agora, Clodina, agora eu acho que elles não
servem de nada, porque a gente já sta no poder do diabo, e ocê bem sabe que
alma que cahe nu inferno não sahe mais, nem á mão de Deus Padre. E a outra,
d’olhos lacrimosos:
— Eu bem não quiria vi. Tanto
dinhêro mode cantá e sambá era mêmo p’ra gente discunfiá. E os homens, mudos,
arrastando as alpercatas, lá iam cabisbaixos, mazorros, refugindo, com timidez,
á curiosidade publica.
Era ao cahir da tarde, uma
tarde elegiaca, violacea, quieta, sem o silvo de uma cigarra. Os penhascos
pareciam de lapis lazuli e os palacios, ainda mais brancos sobre o fundo escuro
das rochas portentosas, alvejavam marmoreos.
Longe, nos estábulos, o gado
tino mugia, nostalgico, pondo no silencio enlevado a tristeza bucolica das
varzeas, em contraste com o requinte da cidade maravilhosa. A moça estremeceu á
voz dos animaes, e logo, relembrando histórias, cochichou á companheira:
— Ocê ouvio, Clodina ? A mode
qu’é boi berrando. Não vá sê gente encantada !
E os homens, alguns vaqueiros, á
plangencia dos touros, reviam as terras de longe e os marroás robustos sahindo
dos banhados com um filete de baba a escorrer ao focinho, parando, firmes nos
jarretes e mugindo para o céo sereno, como num adeus aos sol.
Era a hora angelical e a
tribu poz-se a rezar baixinho, á medida que a noite, lá ao alto, começava a desfiar
o seu rosario de estrellas.
Subito uma deflagração !
Collares de lampadas em fogo e a linha dos edificios debruada a luzes. Foi um
medo panico indizivel: “Vote ! Misericordia ! T'esconjuro ! Nossa Senhora
!”
—Clodina, ocê tá vendo ? Eu
não dixe ? É o inferno ! Oia cumo tudo se accendeu d’uma vez e sem phosque
[fósforo].
Estacaram deslumbrados. A Cidade Maravilhosa
resplandecia como nas lendas. No fundo, na concha do palacio das Industrias, a
agua escachoava colorindo-se à refracção das luzes. Surgiram monstros
flammineos acaçapados, no relvedo, esguicharam repuchos polychromicos e a
misera gente tremia e encommendava-se aos santos, fazendo promessas arduas,
arrependida de haver seguido o diabo seductor que a fôra buscar no repouso
feliz da sua terra para arrojal-a naquelle inferno.
E, quando appareceu um
automovel urrando, com os dois immensos olhos accesos em clarões, a debandada
foi tumultuosa e os gritos e os esconjuros atroaram.
Foi em tal estado d’alma que
os sertanejos ensaiaram no theatro os cantos e as danças em que são exímios.
Mas que podiam os miseros
cantar se lhes faltava a voz ? como dançariam elles se as pernas eram como
flexiveis juncos ? O fiasco foi absoluto e o emprezario, corrido, recambiou-os
na manhã seguinte, desfazendo no espirito do povo uma formosa illusão poetica.
E toda a gente está hoje convencida de que cantos e danças de sertanejos são
estopadas ridiculas.
Na Exposição seriam, mas lá
no verde sertão, com a lua a luzir no céo e as fogueiras flammejando, emquanto
o rio murmura o seu canto dormente e a morena, arrepanhando a saia, labios
entreabertos no fervor do samba, sacode, boleia os quadris redondos, e as
violas e os machetes fremem e os violões soluçam e os adufes rebatem o rythmo
do sapateio, lá é que é ver como os corações se agitam, lá é que é sentir o
prestigio do canto, lá é que é comprehender como póde o almiscar estonteante de
um corpo de mulher faceira fazer de um caboclo pacifico um assassino cruel e
desprestigiar um santo tirando-o da ascese para o frenesi na eira.
Sertanejos é no sertão que
são grandes. Pasmados e combalidos que haviam de fazer os pobresinhos ?
Veja-se o peixe espadanando
n'água, siga-se o passaro no voo.
Sertanejos, só vistos no
sertão, na moldura agreste do seu rancho, cantando e dansando, não como
saltimbancos, para serem vistos, mas para gozarem e amarem na liberdade da vida
ingenua que lhes proporciona a natureza simples. Demais a mais... com medo...
Almas não são batatas que se
exhibam em exposições, a alma só se expande livre e expontaneamente.
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