DICAS

10.9.03

OS SERTANEJOS, de COELHO NETO

Crônica "Os Sertanejos" de Coelho Neto na edição de 29-30 de outubro de 1908 de A Notícia. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil.

Crônica publicada na página 3 da edição de A Notícia de 29-30 de outubro de 1908 (pesquisada na Biblioteca Nacional e aqui transcrita na ortografia original). A crônica conta a história de um grupo de artistas sertanejos contratados para se apresentarem na Exposição Nacional daquele ano, mas que, assustados com a modernidade da metrópole, não conseguem repetir ali os mesmos cantos e danças em que são exímios no seu ambiente natural, o plácido sertão, e acabam por decepcionar o público. Afinal, conclui o autor, “almas não são batatas que se exibam em exposições, a alma só se expande livre e espontaneamente”. A aplicação do termo “Cidade Maravilhosa” à Exposição, comum na imprensa da época, gerou o mito de que foi Coelho Neto quem cunhou esse epíteto para o Rio de Janeiro, o que a leitura da crônica desmente. Em 10 de janeiro de 1927 Coelho Neto publicou na pág. 8 do Jornal do Brasil uma versão bastante modificada desta crônica, onde a Exposição dá lugar a um cinema, e, aí sim, a Cidade Maravilhosa se aplica ao Rio, mas àquela altura o epíteto já tinha se consagrado, como você pode conferir aqui.

Chegaram em turma, contractados para cantar e dansar no recinto da Exposição. Gente escolhida! Os homens, guapos, destorcidos, como por lá dizem; as raparigas, lindas, de voz suave e d’uma graça languida no boliar do corpo, mas, depois de um ensaio canhestro, o emprezario, esticando desanimadamente o beiço, antevendo, sem duvida, o fiasco, devolveu-os ao sertão com os seus trajos pittorescos e todo o instrumental languoroso com que se alegram as noites lindas das suaves campinas sertanejas.

Foi um desapontamento, disseram me.

Os pobresinhos, tão airosos nos seus pagos, perderam de todo o garbo, desaprumaram-se logo ao deixarem a estação de desembarque e os primeiros passos com que pisaram o asphalto não seriam mais medrosos e incertos se fossem dados em desfiladeiro de má fama, por entre cruzes, em noite negra e aziaga de agosto.

Lividos, d’olhos esgazeados, achegavam-se uns aos outros, com o terror presago com que se apinham as ovelhas em marcha para o matadouro.

“Ó famanaz [que tem muita fama] da serra, que é da tua arrogancia! Trazes a viola  á bandoleira e caminhas d’olhos baixos, tu, o mais atrevido cantador da serra, dono de tantos corações, vencedor em tantos desafios... Eh! valentaço, que é da tua grimpa [orgulho]?

E tu, moça do collo timido ["tumido" na versão de 1927], musa morena das floralias serranas, tu, que tem [corrigido para "tens" na versão de 1927] sido a deusa da discordia, accendendo rancores com a luz dos olhos negros e despertando a sêde do sangue com a cor da bocca mais cheirosa do que uma baunilha; moça da serra, porque vais tão triste e com os quadris tão quietos, tu que tão bem os cirandas quando, na ponta do pésinho arisco, saltas, ao som da viola, requebrada e risonha, desfiando a fieira.

Moça cheia de graça, que é da côr das tuas faces, que é do teu dengue, que é da tua alma, feita de volupia ?

Estas vozes interrogativas soavam á passagem melancolica da tribu. Pobre gente ! O mar largo, sereno e azul, dobando as suas ondas caireladas [=debruadas] de espumas, conteve a pequena grey. Quedaram os homens estarrecidos, as moças persignaram-se procurando, com dedos tremulos, no papo da camisa, as contas do rosario bento.

Diz a história de Xenophonte que os gregos, livres de Tissaphernes e da gente perfida e bravia das rechans asiaticas, ao avistarem o mar lustroso, lançaram por terra escudos e sarissas e, prostrando-se de joelhos, com lagrimas pela face, saudaram movidamente o mar, a estrada verde que os devia levar, em rumo facil, aos suaves vergeis da Patria desejada.

Sim, mas os gregos eram de origem pelasgica, filhos do mar, e os sertanejos... vinham das campinas ramilhetadas de montas [na versão de 1927 corrigido para “moutas”, ou seja, “moitas”]; vinham das florestas floridas, vinham dos valles avelludados, longe dos littoraes arenosos onde o mar se espreguiça. Acompanhando, com desconfiança, o movimento das ondas, carregavam o cenho, communicando-se suspeitas, e as moças, em voz sumida, juntando as cabeças em colloquio, diziam pasmadas: “Que mundo d'água, Virgem do Ceu!”

Depois do mar, a cidade formidavel, a cidade devoradora d’homens, com as avenidas largas, margeadas de palacios colossaes, com o mover incessante de uma multidão apressada, com o reboliço vertiginoso dos vehiculos, com a zoeira dos automoveis, com o troar dos pregões, com todo esse confuso movimento que é a vida, desde o passo subtil, despercebido de um mendigo andrajoso que se esgueira, ao longo dos muros, resmungando lamurias, até a estropeada heroica de um regimento com a bandeira desfraldada ao vento, as armas lampejando ao sol e os clarins resoando em notas marciaes.

Pobre gente da tranquillidade ! E a tribu lá foi airadamente a seu destino.

Ao entrar na Exposição, na avenida dos palacios brancos, o pasmo subio de ponto.

Uma das moças, aduncando os dedos, puxou a companheira pelo chale e segredou-lhe:

— Assumpta, Clodina: não parece qu'a gente tá vendo uma cidade encantada como aquellas das história?
— É mêmo.
— Oia bem.
— É tal e qual. Parece qu'eu tou uvindo nhá Nica.
— Quem sabe, Clodina !...
— U quê ?
— Quem sabe se aquelle home que foi buscá a gente lá em riba não é mandado...
— Cruz! Crédo! Mecê não trouxe reza ?
— Eu trouxe os meus breves e uma reliquia da Santa Cruz. Mas agora, Clodina, agora eu acho que elles não servem de nada, porque a gente já sta no poder do diabo, e ocê bem sabe que alma que cahe nu inferno não sahe mais, nem á mão de Deus Padre. E a outra, d’olhos lacrimosos:
— Eu bem não quiria vi. Tanto dinhêro mode cantá e sambá era mêmo p’ra gente discunfiá. E os homens, mudos, arrastando as alpercatas, lá iam cabisbaixos, mazorros, refugindo, com timidez, á curiosidade publica.

Era ao cahir da tarde, uma tarde elegiaca, violacea, quieta, sem o silvo de uma cigarra. Os penhascos pareciam de lapis lazuli e os palacios, ainda mais brancos sobre o fundo escuro das rochas portentosas, alvejavam marmoreos.
Longe, nos estábulos, o gado tino mugia, nostalgico, pondo no silencio enlevado a tristeza bucolica das varzeas, em contraste com o requinte da cidade maravilhosa. A moça estremeceu á voz dos animaes, e logo, relembrando histórias, cochichou á companheira:

— Ocê ouvio, Clodina ? A mode qu’é boi berrando. Não vá sê gente encantada ! 

E os homens, alguns vaqueiros, á plangencia dos touros, reviam as terras de longe e os marroás robustos sahindo dos banhados com um filete de baba a escorrer ao focinho, parando, firmes nos jarretes e mugindo para o céo sereno, como num adeus aos sol.

Era a hora angelical e a tribu poz-se a rezar baixinho, á medida que a noite, lá ao alto, começava a desfiar o seu rosario de estrellas.

Subito uma deflagração ! Collares de lampadas em fogo e a linha dos edificios debruada a luzes. Foi um medo panico indizivel: “Vote ! Misericordia ! T'esconjuro ! Nossa Senhora !”

—Clodina, ocê tá vendo ? Eu não dixe ? É o inferno ! Oia cumo tudo se accendeu d’uma vez e sem phosque [fósforo].

Estacaram deslumbrados. A Cidade Maravilhosa resplandecia como nas lendas. No fundo, na concha do palacio das Industrias, a agua escachoava colorindo-se à refracção das luzes. Surgiram monstros flammineos acaçapados, no relvedo, esguicharam repuchos polychromicos e a misera gente tremia e encommendava-se aos santos, fazendo promessas arduas, arrependida de haver seguido o diabo seductor que a fôra buscar no repouso feliz da sua terra para arrojal-a naquelle inferno.

E, quando appareceu um automovel urrando, com os dois immensos olhos accesos em clarões, a debandada foi tumultuosa e os gritos e os esconjuros atroaram.

Foi em tal estado d’alma que os sertanejos ensaiaram no theatro os cantos e as danças em que são exímios.

Mas que podiam os miseros cantar se lhes faltava a voz ? como dançariam elles se as pernas eram como flexiveis juncos ? O fiasco foi absoluto e o emprezario, corrido, recambiou-os na manhã seguinte, desfazendo no espirito do povo uma formosa illusão poetica. E toda a gente está hoje convencida de que cantos e danças de sertanejos são estopadas ridiculas.

Na Exposição seriam, mas lá no verde sertão, com a lua a luzir no céo e as fogueiras flammejando, emquanto o rio murmura o seu canto dormente e a morena, arrepanhando a saia, labios entreabertos no fervor do samba, sacode, boleia os quadris redondos, e as violas e os machetes fremem e os violões soluçam e os adufes rebatem o rythmo do sapateio, lá é que é ver como os corações se agitam, lá é que é sentir o prestigio do canto, lá é que é comprehender como póde o almiscar estonteante de um corpo de mulher faceira fazer de um caboclo pacifico um assassino cruel e desprestigiar um santo tirando-o da ascese para o frenesi na eira.

Sertanejos é no sertão que são grandes. Pasmados e combalidos que haviam de fazer os pobresinhos ?

Veja-se o peixe espadanando n'água, siga-se o passaro no voo.

Sertanejos, só vistos no sertão, na moldura agreste do seu rancho, cantando e dansando, não como saltimbancos, para serem vistos, mas para gozarem e amarem na liberdade da vida ingenua que lhes proporciona a natureza simples. Demais a mais... com medo...

Almas não são batatas que se exhibam em exposições, a alma só se expande livre e expontaneamente.

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