DICAS

9.11.06

QUINTA DA BOA VISTA

E O JARDIM ZOOLÓGICO
(com texto de Helio Brasil)



Quinta da Boa Vista em 1947
(época em que decorre o texto)


Gramado e lago


Árvores e lago


Pagode japonês

Caminharam então rumo à Quinta, vencendo o inacabado viaduto de São Cristóvão e logo entrando pelo portão dos fundos, o Seixas querendo apressar o passo, contido pelos protestos dos companheiros. "Calma, vai tirar o pai da forca?"


Antigo Palácio Imperial, atual Museu Nacional

Atingindo o alto da alameda principal, os rapazes podiam ver a Ilha dos Amores e seus visitantes domingueiros: os casais de namorados, a garotada saltando nas pedras rugosas, adultos jovens e maduros, alguns conduzindo crianças pelas mãos, atentos aos barcos que circundavam as margens de desenho irregular. Encostada a uma das colunas das falsas ruínas, Ana era fotografada por Sulamita enquanto Eva, a outra prima, pesquisava o lago, admirando a grande cobra de cimento que emergia das águas esverdeadas.




Dom Pedro II

Os rapazes desceram, ágeis, os degraus da escadaria que rompia a encosta gramada e cruzaram a ponte, com elegância e equilíbrio, desprezando orgulhosos o amparo do parapeito imitando troncos de árvore. As jovens repararam na chegada dos três companheiros, sobretudo Paulo, que refizera o nó da gravata vermelha com listras brancas, destacado no terno de tergal cinzento. [...] Simularam a coincidência do encontro. "Você por aqui?" Desnecessariamente, pois Eva e Sulamita sabiam do interesse da prima pelo jovem morador da Villa Elzira e adoravam o papel de confidentes e alcoviteiras, que afinal lhes reservava a aproximação com os dois amigos de Paulo. E no desmontado templo greco-romano, sob as precárias sombras das colunas dóricas e arquitraves de cimento, os jovens entregaram-se às brincadeiras e conversas propícias ao cenário de inocente romantismo.



Imperatriz D. Leopoldina (mulher de D. Pedro I)

"Vamos ao Parque Shangai?" A proposta, aceita com entusiasmo, foi feita por Ana e logo o grupo tratou de abandonar a ilha em fila indiana para cruzar de novo a ponte, quase uma pinguela em concreto simulando troncos cortados longitudinalmente. As moças exageravam os cuidados, obrigando os rapazes a guiá-las colocando-lhes as mãos delicadamente nos ombros e o expediente agradava sobremodo a Paulo Maluco, uma vez que o vestido de sua eleita tombava um pouco, deixando o ombro direito nu, expostas na pela alva inúmeras marquinhas douradas. Mais que direcionar a jovem, impedindo-a de tombar nas águas limosas, a mão de Paulo tentava esculpir o arredondado e tépido território sem que a dona mostrasse reação negativa. [...]



Jardim Zoológico: Papagaio-de-cara-roxa

Chegaram afinal ao topo e caminharam em direção ao museu, o eixo da alameda bem marcado pela enegrecida estátua do segundo imperador.[...] Tudo resplandecia, as sapucaias floriam e os pássaros cantavam. As campainhas de bicicletas faziam, em sons rascantes, o contraponto à algazarra das famílias, marinheiros e soldados flertando e dizendo piadas para as moças em bandos.



Jacarés

Céu imaculado deixava escorregar o sol a fundir-se em ouro banhando o cenário de alegria quando um carro negro, trepidando, insólito, surgiu na pista de asfalto juncada de folhas. Na direção, o mecânico Melânio testando o motor do Ford quarenta e dois; ao lado, aflito, atento aos ruídos da máquina, seu Jacó Pelcman. Deus e Jeová cochilaram bastante para que um dibuk fizesse engasgar o carburador e o carro veio parando, parando e parando até que o israelita surpreendeu a filha Ana, enlevada, ouvindo as palavras do Seixas, braço passado nos ombros da mocinha. Um metro e noventa de ira milenar deixaram o carro, olhos congestionados, o início da calva avermelhando-se. "O que faz você aqui com um gói?", e estalou a mão ampla, dedos roliços na face de porcelana. Emudeceram pássaros, campainhas, homens e mulheres. No silêncio talvez se ouvisse o pingar das lágrimas da jovem judia. [...] Lançou depois um olhar duro para o moço Seixas. "Filha minha não é para andar por aí com qualquer um". Entrou pesadamente no carro e bateu a porta. [...]


Diana, deusa dos animais selvagens e da caça

Na calçada, os circundantes voltaram à atividade lançando olhares de pena ou de zombaria sobre o rapaz que ficara tão imóvel quanto as colunas da ilha. Sentia-se mais petrificado que os rochedos cinzentos sobre os quais se sentara pouco antes em companhia de Ana. [...] Só conseguiu perguntar: "O que é gói? Que porra é essa?"

Um senhor grisalho que assistira à cena, ainda próximo, quase murmurando, explicou-lhe: "Você é de outra raça, meu filho". E irônico: "Se você fosse preto, seria pior!"


(Do maravilhoso livro de Helio Brasil, A Última Adolescência, um variado painel suburbano dos anos 40, Editora Bom Texto, págs. 172-4.)


Alameda de palmeiras


O lago ao entardecer


Museu Nacional ao entardecer

A Quinta e o Zoológico também estão na postagem COM HELIO BRASIL EM SÃO CRISTÓVÃO. Fotos de Ivo & Mi, exceto a primeira, do Acervo do Arquivo Nacional, que Helio Brasil usou na capa de seu A última adolescência

13.10.06

IGREJA DE N. S. DA PENHA 2006

VEJA TAMBÉM NESTE BLOG A POSTAGEM IGREJA DE N.S. DA PENHA 2007


Nossa Senhora da Penha

A devoção à Santíssima Virgem sob o título de Nossa Senhora da Penha de França teve origem na Europa e data do século XV.

Segundo o Pe.Colunga, em seu livro "Nuestra Señora de Peña de Francia", um peregrino francês de nome Simão Vela, em 19 de maio de 1434, descobriu em Penha de França monte situado na serra do mesmo nome, na província de Salamanca a imagem de Nossa Senhora, tão importante para a cristandade.
(Este texto e os seguintes obtidos no site do Santuário da Penha.)



A igreja no alto da escadaria de 382 degraus
(e não 365, como se acredita)


Subindo...


Quase chegando (ufa, devia ter pego o elevador!)


Olha só o que você subiu!

No ano de 1817 ia subindo a pedra um piedoso casal quando a esposa, Sr.ª. Maria Barbosa, comentou com o marido que iria pedir a Nsª Srª da Penha para interceder por eles para que Deus lhes concedesse um filho, visto já estarem casados há alguns anos e não terem filhos.

A Sr.ª Maria Barbosa confiou, pediu e prometeu, que se tivesse um filho mandaria esculpir no duro granito do penhasco uma escadaria para facilitar o acesso dos devotos de Nsª Srª da Penha ao Santuário. No ano seguinte o casal era presenteado com um lindo filho e no ano de 1819 a escadaria estava pronta. São 382 degraus talhados na própria pedra, mais ainda do que o número dos dias do ano.




A vista lá de cima, impressionante


Ao fundo, a Baía da Guanabara


Cruzeiro de pedra


Conjunto habitacional encravado em plena favela


Fachada da igreja, de fundos para a escadaria

Tudo começou no início do século XVII, por volta do ano de 1635, quando o Capitão Baltazar de Abreu Cardoso ia subindo o Penhasco (grande pedra) para ver as suas plantações, uma vez que era proprietário de toda a área no entorno do atual Santuário, de repente foi atacado por uma enorme serpente. O Baltazar, que era devoto de Nossa Senhora, quando se viu só e incapaz de se defender, pediu socorro a Nossa Senhora gritando: "Minha Nossa Senhora, valei-me!". Nesse preciso momento surgiu um lagarto inimigo das serpentes, e travou-se uma luta mortífera entre os dois animais. Baltazar por sua vez, não perdeu tempo e fugiu.

Depois de se ter recuperado do susto, Baltazar reconheceu que o lagarto apareceu precisamente no momento em que ele pediu a proteção da Virgem Maria. Reconhecido, por tão importante gesto maternal, Baltazar construiu uma pequena capela onde colocou uma imagem de Nossa Senhora.

Mais tarde, no ano de 1870, foi demolida, esta capela, e construído no seu lugar um novo templo: uma igreja com uma torre e novos sinos. Por volta do ano de 1900 houve uma nova intervenção ampliando o templo sendo construídas duas torres nas quais, mais tarde, foi instalado um carrilhão com 25 sinos.




Portão: vamos entrar?


Interior da igreja


Teto


Lá embaixo, a favela


Paz: quando enfim chegará?


Bandinha no coreto


Fotos na sala dos milagres: quantas graças alcançadas!

Colocado à entrada da cidade, com o sorriso de Mãe aos que chegam, quer pela Av. Brasil ou Linha Vermelha, quer pela Ponte Rio- Niterói ou mesmo pelo Aeroporto Internacional Tom Jobim, o Santuário de Nossa Senhora da Penha é, por excelência, o trono que Maria, Mãe de Deus, escolheu no Rio de Janeiro, para ser o centro de sua devoção entre nós.

Veja também neste blog a postagem Igreja de N.S. da Penha 2007 com fotos da Igreja num dia ensolarado.

4.10.06

EU NÃO EXISTO SEM O PÃO DE AÇÚCAR

MARIZA DE ALMEIDA REBOUÇAS



Rio, 20 de janeiro de 1998
Querido Dieter



Você entrou naquele avião e eu sabia que o nosso caso de amor estava acabado. Só o caso, o amor não. Vou seguir amando você enquanto respirar, e, se houver vida outra além desta conhecida, creia, o meu amor ainda será você. E os borrões, redesenhando as rosas desse lindo papel de carta que você me trouxe, são lágrimas sobre tinta, testemunhas líquidas e certas do sofrimento que experimento ao decidir permanecer no Brasil.

Dieter, em sua sabedoria germânica, diga-me como vou viver no seu sóbrio país? Dieter, amor meu, como se planta um coqueiro em Berlim? Porque aqui estou como um coqueiro solidamente plantado nas areias asfaltadas de Copacabana onde nos conhecemos, lembra? Fazia um calor dos diabos mesmo nas primeiras horas do dia, eu caminhando descalça nas bordas de mar e areia, exercício lúbrico e eficiente, músculos, tendões, preguiça, um caldo só de bem-aventurança anunciando o privilégio renovado de estar viva em Copacabana, no verão, debaixo do sol, no Rio, meu Rio, meu reino.



Sabe, amor, carioca não emigra. Se emigra, não é: nasceu. Carioca perde a graça se longe está. Os feitiços com que me enfeitas, bobão, fervilham a quarenta graus no caldeirão desta cidade onde o caos se sente em casa e o bem e o mal usam bermudas de janeiro a março. Logo ali, em São Paulo, perco os poderes.

Amor, eu sou daqui, não moro apenas.

Lembra, te levei ao Grajaú, naquelas ruas ladeadas de tamarindeiras carregadas de sementes azedas e doces ao mesmo tempo? Então, te mostrei meu berço. São tantas as esquinas onde dobrei minha vida, a caminhada trabalhosa da zona norte à zona sul, ultrapassando a alagada Praça da Bandeira e, além do Santa Bárbara, a brisa e o cheiro do mar. Gaivota urbana, no concreto fiz meu ninho, que peixe se compra na feira. Tem sido assim, acordar cedo, andar ao longo da calçada, o horizonte ao alcance da mão, o verde nos limites do azul e os dourados da manhã que explode. Às vezes chove, e antes do céu virar em prata, aparece o arco-íris. Não falho um dia. Já vi todas as ressacas encolhendo o Arpoador, conheço os andarilhos diários e os bissextos, sigo acompanhada do costume, quase reconheço as raivosas buzinas que morrem de inveja deste ócio. Injustiça. Depois do meio-dia percorro repartições públicas vendendo artigos do Paraguai. Muambeira, sim, com muita honra. Tenho butique em casa, duas coisas não me faltam: dinheiro para pagar as contas e gente pra conversar. Você sempre reclamou de falta de privacidade lá de casa, a freguesia chegando fora de hora atrás de um presente, uma roupa, os improvisos além do entendimento desse seu cérebro ordenado.



Dieter, tem muambeira na Alemanha?
Tenho visto saudade na tua impaciência. O desconforto substitui o prazer, tá um calor danado, né?
Dieter, meu amado, lembra do princípio, eu voltando do mar, você chegando do hotel, estendendo sem jeito a toalha na areia, o sol do Rio queimando a tua pele conservada virgem pelo sol de Berlim? Tive pena da perda inocente dessa brancura e te emprestei meu filtro solar fator de proteção 30, caríssimo, importado. Até passei nas suas costas, generosamente, saboreando os relevos desses músculos rijos, que não sou de perder o instante.

Dieter, amor da minha vida, lembra como foi fácil passar da praia ao quarto, sala, banheiro e cozinha na calma Cinco de Julho? É que aqui sou e serei a dona de tudo, faço e desfaço. De posse de mim, tomei você. Trouxe o sonho pra casa.



E agora você quer voltar para si mesmo, é normal. Quer ser o senhor de tudo, na neve de todos os invernos, nas águas dos degelos, não sei, fico imaginando, eu que jamais vi a neve.

Dieter, meu amado, conhecemos a felicidade nesses meses quando enovelamos um inglês alinhavado, quase supérflua comunicação verbal, porque no mais das vezes usamos a linguagem da química dos corpos, da rotina de café da manhã e roupa lavada. Quanta paixão experimentamos, as diferenças que ora nos afastam, antes nos atraíam. Ouro e cobre, nossas bandeiras se embolando, verde, azul, vermelho, preto e o amarelo comum. Era lindo. Você doido por mim, eu louca por você. No travesseiro, nossos tons complementares, meus cabelos escuros, os teus tão louros - ainda que ralos. A noite nos meus olhos, nos teus a clareza azul, espelhos de uma raça eugênica e desenvolvida. Apesar que higiênica sou eu, gosto muito mais de tomar banho que você.



Mas nada é para sempre, seu trabalho no país acabou, o sortilégio também. Outra vez peguei teu olhar vagando, indaguei, é o calor , despistaste. Mentira, era o começo da volta, o canto das valquírias, umas chatas. Você muda, como se outro virasse. Ledo engano, você apenas retoma posse de si: Dieter Uhl.

Ditinho, meu bem, devolvo a passagem, mas guardarei num sacrário as memórias da nossa aventura. Fomos tão felizes, né?

Adeus, meu gringo, e perdão. Ainda que eu pudesse um dia suportar o frio e a neve aninhada nos teus braços, à luz branda de uma lareira elétrica, saboreando beijos e chocolates, ainda assim eu estaria apenas sobrevivendo.

É que eu não existo sem o Pão de Açúcar.

Eternamente sua,
Lucinha


Conto publicado originalmente sob o título "Dieter" no livro A Rainha da Hora. O livro (que eu recomendo) pode ser adquirido diretamente com a autora. Clique no marcador abaixo para ler outro texto de Mariza de Almeida Rebouças. Fotos do Pão de Açúcar de Ivo & Mi.

27.9.06

VOCÊ TEM MEDO DO CATUMBI?

JUAREZ BECOZA

Praça da Apoteose

Casario na Rua do Catumbi

Idem

Volta e meia ouço alguém dizer que o Catumbi é um bairro violento e perigoso. Que injustiça, caro leitor. Não que os morros que cercam a área tenham parado de cuspir fogo de quando em vez. Mas, em geral, o centrinho do Catumbi, aquele que começa no cemitério e termina na Apoteose, ainda mantém a aura de tranqüilidade típica dos subúrbios. No caso, um subúrbio a cinco minutos do Centro, onde ainda sobram os sobrados, as casas geminadas, as cadeiras na calçada e os botecos. Muitos botecos.

E não poderia ser mesmo diferente, em se tratando de um bairro que viu Pixinguinha nascer, criou Jorge Ben e abrigou Moreira da Silva, o último dos malandros, que nunca bebeu mas teve a vida marcada pela boemia. No Catumbi, portanto, botequins fazem parte do cenário e da cultura. E o melhor deles é o cinqüentenário Bar do Bacalhau.

No fim de uma rua sem saída, este espartano e familiar boteco português serve um bacalhau honesto e generoso. Por décadas, seu José, o dono, fazia o peixe na brasa. Desde a sua morte, há cinco anos, dona Maria, a viúva, e Lola, a filha, oferecem o bacalhau à portuguesa — assado ou frito — caprichado no pimentão e na azeitona preta (R$ 45, para três). Aos 81 anos, Dona Maria anda pensando em fechar a casa. Só não o fez ainda por insistência dos fregueses, fiéis ao ótimo bacalhau. Eu entre eles.

Lola

Uma cervejinha que ninguém é de ferro

Igreja de N.S. das Dores da Salette

Acesso ao túnel Santa Bárbara e encosta de Santa Teresa

Acesso ao Santa Bárbara e favela do Morro da Coroa

Chalé (*)

Rua Pedro Mascarenhas (*)

Idem

Encosta de Santa Teresa vista do cemitério

Após a chuva...

Vila Idalina (detalhe)

Uma cervejinha que ninguém é de ferro II

O bacalhau do Bar do Bacalhau

Dona Maria e alegres fregueses do Bar (*)

Endereço do Bar do Bacalhau: Rua Valença, 25, Catumbi — tel. 2293.9190.
Crônica publicada em 2006 na coluna "Pé-Sujo" de O Globo e reproduzida aqui com autorização do autor. Visite o blog do Juarez
Fotos do editor do blog, exceto as marcadas com (*), de Raul Antônio Félix de Souza.