Nos últimos anos, o Rio de Janeiro vem assistindo a uma revolução silenciosa e um tanto tardia que, lentamente, está transformando a maneira de enxergar e pensar a cidade: o resgate da sua memória, através da recuperação de parte do patrimônio arquitetônico e a consequente valorização do espaço urbano circundante. Não deixa de ser uma mudança radical numa cidade que, durante décadas, tratou as ruas com menos carinho do que o merecido, inclusive calando-se diante do apetite criminoso da especulação imobiliária, que fez desaparecer ao longo do século XX verdadeiros tesouros em nome do progresso a qualquer custo. Nessa onda destruidora foram-se, entre outros, o Palácio Monroe, o Ministério da Agricultura, o Teatro Lírico, o Pavilhão do Mourisco, o Hotel Avenida, o Hotel Palace, a Mansão Martinelli e o Edifício Ferrini. Este último, situado em plena avenida Atlântica e demolido em 1978, foi, seguramente, um dos cinco mais estupendos e luxuosos prédios residenciais erguidos na orla brasileira em todos os tempos. Até o famoso Copacabana Palace correu o risco de vir abaixo por iniciativa da própria família proprietária do hotel, que pretendia erguer no local um complexo de prédios de luxo, mas, felizmente nessa época, início dos anos oitenta, a sociedade já se mostrava bem mais consciente da importância da conservação dos seus ícones arquitetônicos e a idéia foi suplantada antes mesmo de ganhar fôlego.
Essa revolução ainda não chegou a afetar o grosso da população, mas já constitui um avanço notável, pois, ao incutir no governo e nas elites a necessidade de se cultivar a memória de uma cidade onde boa parte da História do Brasil foi escrita, coloca um freio no processo de descaracterização arquitetônica, abrindo caminho para um planejamento mais racional do uso e da ocupação do solo urbano, revitalizando áreas degradadas e estimulando o empresariado a investir na restauração e modernização de antigos prédios decadentes situados em bairros centrais, em vez de simplesmente se limitar à tarefa de erguer novas construções em áreas residenciais afastadas. Isso, na realidade, já começa a acontecer, embora ainda timidamente e dois exemplos conhecidos são o do tradicional prédio do restaurante Amarelinho, na Cinelândia e o do Edifício Guarujá, em Copacabana, que ficou anos abandonado até ser reformado e transformado num requintado hotel-residência.
Um dos maiores entraves para a consolidação dessa mentalidade talvez seja a notória resistência que boa parte do povo carioca, mesmo entre as camadas mais instruídas, ainda tem em valorizar a vertente, digamos, mais urbana da cidade, ao contrário do que sempre aconteceu com a paisagem natural, historicamente enaltecida. Outro dia, por exemplo, quase fui atropelado por um ciclista alucinado e mal-educado, em Copacabana, porque, inadvertidamente, parei num canto da calçada por alguns instantes que não chegaram a um minuto para apreciar a beleza dos contornos de um imponente edifício residencial, erguido sobre uma pequena galeria comercial de inspiração parisiense. Entre outras coisas, eu tentava calcular a idade do prédio, que, apesar da sua fachada neoclássica, fora, provavelmente, concluído entre o fim da década de trinta e o começo da de quarenta – quando já predominavam o Art Déco e a sua variante Marajoara -, pois obedecia a uma norma instituída naquele período, obrigando as novas construções a guardar uma distância maior do meio-fio, a fim de tornar as calçadas mais largas. Só a título de comparação: o edifício do cinema Roxy, situado ao lado, fora, de acordo com o Guia da Arquitetura Art Déco no Rio de Janeiro (Prefeitura do Rio/Casa da Palavra; 162 páginas; 1997), erguido em 1934, quando ainda não vigorava a tal norma, razão pela qual a calçada no seu entorno é mais estreita do que no restante do quarteirão.
Felizmente, não tive o desprazer de conversar com o cavalheiro montado na bicicleta – que, não satisfeito em quase ter me atropelado num espaço reservado aos pedestres, ainda me xingou e à minha mãe –, mas passado o susto, comentei o incidente com um outro pedestre e ele me respondeu mais ou menos o seguinte: "O cara não devia ter feito isso, mas aqui também não é lugar para o senhor ficar parado. Se ainda fosse na praia, apreciando o mar, as mulheres... Mas, aqui não tem nada para ver".
Eu poderia ter rebatido, apontando uns quatro edifícios com belas portarias de mármore visíveis daquele ponto, mas concluí, sabiamente, que não valeria a pena. Como bem disse o jornalista inglês Christopher Pickard, numa entrevista em 1993, "os cariocas andam pelas ruas do Rio, indiferentes à riqueza das suas construções históricas". Experimente fazer um elogio à arquitetura da cidade e sempre haverá alguém com ares de superioridade por perto para estufar o peito e, com a voz impostada de quem, supostamente, viajou o mundo, lhe chamar a atenção de forma quase professoral, insinuando que você não tem a menor noção do que diz, que bonitas cidades, urbanisticamente falando, você encontra no Hemisfério Norte: Veneza, Paris, Praga, Sevilha, Barcelona, Nova York, Londres, São Francisco, Montreal... No Rio, o que conta mesmo são as praias, as mulheres, o verde dos parques, o azul do mar, o time do coração, as escolas de samba, o chope gelado no botequim, a ginga, o molejo e a simpatia do povo. A arquitetura é sem-graça, pobre. As ruas são congestionadas, os prédios maltratados, as calçadas sujas... Vá viajar e ver como é o mundo, antes de ficar dizendo bobagem.
Esse tipo de argumentação é consequência não só de uma nefasta ignorância em relação ao próprio meio, como também de um certo temor que muita gente tem de passar por caipira, por alguém que não conhece outros lugares e, portanto, não possui parâmetros de comparação suficientes para situar o Rio dentro de um contexto mais amplo. Aí eu pergunto: para que perder tempo fazendo comparações, quando é muito melhor avaliar cada lugar isoladamente? Afinal, as cidades são diferentes entre si, possuem características que lhes são próprias, umas são mais bonitas do outras, algumas são lindas, outras horrorosas. Veneza, Sevilha e Praga por exemplo, são, em tese, mais belas do que Budapeste, Zurique e Londres. E daí? Alguém vai afirmar que, por conta disso, Budapeste é uma cidade feia? Nesse caso, seria simples: se elegeria a cidade mais bonita do mundo e o resto seria, metaforicamente, jogado numa vala comum.
O mesmo raciocínio se manifesta quando pensamos o Brasil historicamente. Isso ficou bastante evidente na época da celebração dos quinhentos anos. Ouvi gente afirmar que comemorar quinhentos anos não era nada, era sinal de pieguice ufanista. A Áustria, por exemplo, havia festejado mil anos, recentemente. Então, como, inclusive, eu tive a oportunidade de argumentar na ocasião, a Áustria também devia ter se abstido de realizar qualquer comemoração, já que o Irã, em 1971, havia festejado dois mil e quinhentos anos. E se nós formos falar da civilização indiana, com mais cinco mil anos, então, nada surgido depois deveria ser lembrado. Até mencionar a Roma imperial como sendo algo "antigo" acabaria soando como sintoma de estreiteza cultural.
O curioso é que essas mesmas pessoas que enchem a boca para falar mal da cidade, são as primeiras a contribuir para descaracterizá-la, ao construir "puxadinhos" nas suas coberturas, cercar suas portarias com grades medonhas, escolhidas sem o menor critério e não achar nada demais em fechar suas varandas com esquadrias de alumínio, transformando-as em horrendos jardins de inverno, desfigurando, assim, todo o projeto original do prédio, como se vê muito em bairros mais tradicionais, notadamente Copacabana e Flamengo. É como aquela típica história do sujeito que sai de carro até para ir à esquina e depois se queixa dos engarrafamentos, esquecendo-se de que é um dos causadores. Ou do cidadão que emporcalha as ruas e depois reclama que a cidade está imunda.
E andar pelas ruas do Rio, apreciando as esquinas, as portarias, a essência de cada construção, é um exercício tão estimulante, interessante e enriquecedor que eu chego a sentir pena dos cariocas que não conseguem se entregar a esse deleite. Existe uma tamanha riqueza de estilos arquitetônicos – que vão do Barroco ao Moderno, passando pelo Neoclássico e o Art Déco – que fica difícil encontrar paralelo em qualquer outra cidade brasileira. Muita gente desconhece, por exemplo, que as pilastras revestidas de pastilhas, comuns nas portarias de muitos edifícios residenciais da Zona Sul, são resultado da incorporação de elementos da escola modernista em projetos da construção civil, principalmente a partir da década de 50 e que o valor arquitetônico desses imóveis é muito maior do que se imagina. Uma outra curiosidade interessante é que muitas garagens subterrâneas de prédios erguidos nos anos quarenta foram concebidas para servir como abrigos antiaéreos a fim de proteger os moradores de um eventual bombardeio nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Alguém poderá alegar que essa discussão é fútil numa cidade com tantos problemas sociais e estruturais; ou delirante, já que o Rio está repleto de construções feias, verdadeiros caixotes encardidos de concreto, que parecem já ter nascido decadentes. Digo que, se a cidade tivesse abraçado esse debate há mais tempo, muitos desses problemas talvez nem existissem. A ausência de consciência e cultura urbanas é uma das piores doenças de que uma cidade pode sofrer e esse mal, infelizmente, está presente em todo o Brasil. Hoje, enquanto as favelas crescem de um lado e a classe média se encastela em shoppings e condomínios fortificados do outro, à cidade resta o papel inexpressivo de mero espaço comum de passagem. Valorizar a sua arquitetura pode ser um ótimo começo para levar à população a ideia da rua como centro principal da vida social e, assim, atenuar o processo de degradação urbana que tanto prejuízo traz ao bem-estar, à imagem e à auto-estima das metrópoles brasileiras.
Essa revolução ainda não chegou a afetar o grosso da população, mas já constitui um avanço notável, pois, ao incutir no governo e nas elites a necessidade de se cultivar a memória de uma cidade onde boa parte da História do Brasil foi escrita, coloca um freio no processo de descaracterização arquitetônica, abrindo caminho para um planejamento mais racional do uso e da ocupação do solo urbano, revitalizando áreas degradadas e estimulando o empresariado a investir na restauração e modernização de antigos prédios decadentes situados em bairros centrais, em vez de simplesmente se limitar à tarefa de erguer novas construções em áreas residenciais afastadas. Isso, na realidade, já começa a acontecer, embora ainda timidamente e dois exemplos conhecidos são o do tradicional prédio do restaurante Amarelinho, na Cinelândia e o do Edifício Guarujá, em Copacabana, que ficou anos abandonado até ser reformado e transformado num requintado hotel-residência.
Um dos maiores entraves para a consolidação dessa mentalidade talvez seja a notória resistência que boa parte do povo carioca, mesmo entre as camadas mais instruídas, ainda tem em valorizar a vertente, digamos, mais urbana da cidade, ao contrário do que sempre aconteceu com a paisagem natural, historicamente enaltecida. Outro dia, por exemplo, quase fui atropelado por um ciclista alucinado e mal-educado, em Copacabana, porque, inadvertidamente, parei num canto da calçada por alguns instantes que não chegaram a um minuto para apreciar a beleza dos contornos de um imponente edifício residencial, erguido sobre uma pequena galeria comercial de inspiração parisiense. Entre outras coisas, eu tentava calcular a idade do prédio, que, apesar da sua fachada neoclássica, fora, provavelmente, concluído entre o fim da década de trinta e o começo da de quarenta – quando já predominavam o Art Déco e a sua variante Marajoara -, pois obedecia a uma norma instituída naquele período, obrigando as novas construções a guardar uma distância maior do meio-fio, a fim de tornar as calçadas mais largas. Só a título de comparação: o edifício do cinema Roxy, situado ao lado, fora, de acordo com o Guia da Arquitetura Art Déco no Rio de Janeiro (Prefeitura do Rio/Casa da Palavra; 162 páginas; 1997), erguido em 1934, quando ainda não vigorava a tal norma, razão pela qual a calçada no seu entorno é mais estreita do que no restante do quarteirão.
Felizmente, não tive o desprazer de conversar com o cavalheiro montado na bicicleta – que, não satisfeito em quase ter me atropelado num espaço reservado aos pedestres, ainda me xingou e à minha mãe –, mas passado o susto, comentei o incidente com um outro pedestre e ele me respondeu mais ou menos o seguinte: "O cara não devia ter feito isso, mas aqui também não é lugar para o senhor ficar parado. Se ainda fosse na praia, apreciando o mar, as mulheres... Mas, aqui não tem nada para ver".
Eu poderia ter rebatido, apontando uns quatro edifícios com belas portarias de mármore visíveis daquele ponto, mas concluí, sabiamente, que não valeria a pena. Como bem disse o jornalista inglês Christopher Pickard, numa entrevista em 1993, "os cariocas andam pelas ruas do Rio, indiferentes à riqueza das suas construções históricas". Experimente fazer um elogio à arquitetura da cidade e sempre haverá alguém com ares de superioridade por perto para estufar o peito e, com a voz impostada de quem, supostamente, viajou o mundo, lhe chamar a atenção de forma quase professoral, insinuando que você não tem a menor noção do que diz, que bonitas cidades, urbanisticamente falando, você encontra no Hemisfério Norte: Veneza, Paris, Praga, Sevilha, Barcelona, Nova York, Londres, São Francisco, Montreal... No Rio, o que conta mesmo são as praias, as mulheres, o verde dos parques, o azul do mar, o time do coração, as escolas de samba, o chope gelado no botequim, a ginga, o molejo e a simpatia do povo. A arquitetura é sem-graça, pobre. As ruas são congestionadas, os prédios maltratados, as calçadas sujas... Vá viajar e ver como é o mundo, antes de ficar dizendo bobagem.
Esse tipo de argumentação é consequência não só de uma nefasta ignorância em relação ao próprio meio, como também de um certo temor que muita gente tem de passar por caipira, por alguém que não conhece outros lugares e, portanto, não possui parâmetros de comparação suficientes para situar o Rio dentro de um contexto mais amplo. Aí eu pergunto: para que perder tempo fazendo comparações, quando é muito melhor avaliar cada lugar isoladamente? Afinal, as cidades são diferentes entre si, possuem características que lhes são próprias, umas são mais bonitas do outras, algumas são lindas, outras horrorosas. Veneza, Sevilha e Praga por exemplo, são, em tese, mais belas do que Budapeste, Zurique e Londres. E daí? Alguém vai afirmar que, por conta disso, Budapeste é uma cidade feia? Nesse caso, seria simples: se elegeria a cidade mais bonita do mundo e o resto seria, metaforicamente, jogado numa vala comum.
O mesmo raciocínio se manifesta quando pensamos o Brasil historicamente. Isso ficou bastante evidente na época da celebração dos quinhentos anos. Ouvi gente afirmar que comemorar quinhentos anos não era nada, era sinal de pieguice ufanista. A Áustria, por exemplo, havia festejado mil anos, recentemente. Então, como, inclusive, eu tive a oportunidade de argumentar na ocasião, a Áustria também devia ter se abstido de realizar qualquer comemoração, já que o Irã, em 1971, havia festejado dois mil e quinhentos anos. E se nós formos falar da civilização indiana, com mais cinco mil anos, então, nada surgido depois deveria ser lembrado. Até mencionar a Roma imperial como sendo algo "antigo" acabaria soando como sintoma de estreiteza cultural.
O curioso é que essas mesmas pessoas que enchem a boca para falar mal da cidade, são as primeiras a contribuir para descaracterizá-la, ao construir "puxadinhos" nas suas coberturas, cercar suas portarias com grades medonhas, escolhidas sem o menor critério e não achar nada demais em fechar suas varandas com esquadrias de alumínio, transformando-as em horrendos jardins de inverno, desfigurando, assim, todo o projeto original do prédio, como se vê muito em bairros mais tradicionais, notadamente Copacabana e Flamengo. É como aquela típica história do sujeito que sai de carro até para ir à esquina e depois se queixa dos engarrafamentos, esquecendo-se de que é um dos causadores. Ou do cidadão que emporcalha as ruas e depois reclama que a cidade está imunda.
E andar pelas ruas do Rio, apreciando as esquinas, as portarias, a essência de cada construção, é um exercício tão estimulante, interessante e enriquecedor que eu chego a sentir pena dos cariocas que não conseguem se entregar a esse deleite. Existe uma tamanha riqueza de estilos arquitetônicos – que vão do Barroco ao Moderno, passando pelo Neoclássico e o Art Déco – que fica difícil encontrar paralelo em qualquer outra cidade brasileira. Muita gente desconhece, por exemplo, que as pilastras revestidas de pastilhas, comuns nas portarias de muitos edifícios residenciais da Zona Sul, são resultado da incorporação de elementos da escola modernista em projetos da construção civil, principalmente a partir da década de 50 e que o valor arquitetônico desses imóveis é muito maior do que se imagina. Uma outra curiosidade interessante é que muitas garagens subterrâneas de prédios erguidos nos anos quarenta foram concebidas para servir como abrigos antiaéreos a fim de proteger os moradores de um eventual bombardeio nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
Alguém poderá alegar que essa discussão é fútil numa cidade com tantos problemas sociais e estruturais; ou delirante, já que o Rio está repleto de construções feias, verdadeiros caixotes encardidos de concreto, que parecem já ter nascido decadentes. Digo que, se a cidade tivesse abraçado esse debate há mais tempo, muitos desses problemas talvez nem existissem. A ausência de consciência e cultura urbanas é uma das piores doenças de que uma cidade pode sofrer e esse mal, infelizmente, está presente em todo o Brasil. Hoje, enquanto as favelas crescem de um lado e a classe média se encastela em shoppings e condomínios fortificados do outro, à cidade resta o papel inexpressivo de mero espaço comum de passagem. Valorizar a sua arquitetura pode ser um ótimo começo para levar à população a ideia da rua como centro principal da vida social e, assim, atenuar o processo de degradação urbana que tanto prejuízo traz ao bem-estar, à imagem e à auto-estima das metrópoles brasileiras.